Direito Civil

Alimentos sem culpa

Alimentos sem culpa

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

Talvez não se tenha atentado ainda no alcance da alteração promovida pelo atual estatuto civil, desvinculando a responsabilidade alimentar da causa da separação. A possibilidade de não só o inocente, mas também o responsável pelo fim do casamento pleitear alimentos introduz profundas mudanças na obrigação alimentar decorrente da sociedade conjugal. Agora não mais se pode falar em apenamento tendo por pressuposto a culpa, eis reconhecido o direito do cônjuge de obter alimentos mesmo se foi o culpado pela separação. Assim, merece ser repensada a natureza do encargo que persiste depois da dissolução do casamento e pode onerar um inocente, impondo-lhe o dever de pagar alimentos em favor do culpado pelo desenlace do vínculo matrimonial.

 

O dever de mútua assistência, atribuído aos cônjuges quando do casamento, é que dá origem à obrigação alimentar. Trata-se de ônus que surge na solenidade do casamento e persiste mesmo depois de solvido o vínculo matrimonial. Somente a sua exigibilidade está condicionada ao rompimento do casamento. Por isso, o encargo alimentar sempre foi reconhecido como uma seqüela do dever de assistência, obrigação que decorre de imposição legal, no momento das núpcias. A responsabilidade recíproca pela subsistência do consorte é um dos efeitos do casamento, imposta coactamente, pois independe da vontade dos noivos. Ainda que o ônus assistencial seja recíproco, os alimentos revestiam-se – ao menos até o advento do atual Código Civil – de caráter punitivo-indenizatório, já que decorriam da condenação do cônjuge culpado em favor do consorte inocente.

 

A lei civil anterior, em sua redação original, apesar de impor a ambos os cônjuges o dever de mútua assistência, só previa a obrigação alimentar do marido em favor da mulher inocente e pobre. Quando da edição do Código Civil de 1916, vigorava o princípio da indissolubilidade do casamento, eis que só se extinguia pela morte de um dos cônjuges ou pela anulação do casamento. Havia, porém, a possibilidade de o matrimônio terminar pelo desquite, o que dava ensejo à separação de fato dos cônjuges e à dispensa do dever de fidelidade, além de pôr fim ao regime de bens. No entanto, mantinha-se inalterado o vínculo matrimonial. Mesmo estando desquitados, como o casamento não se dissolvia, o encargo assistencial permanecia, ao menos do homem para com a mulher, a depender de sua inocência e necessidade, assim reconhecida na ação de desquite.

 

Com o advento da Lei do Divórcio, o dever de alimentos entre os cônjuges passou a ser recíproco, mas imputável somente ao responsável pela separação. Aquele que teve conduta desonrosa ou praticou qualquer ato que tenha importado em grave violação dos deveres do casamento, tornando insuportável a vida em comum, era condenado a pagar alimentos ao consorte que não teve culpa pelo rompimento do vínculo afetivo. Da redação do artigo 19 da Lei do Divórcio, a única conclusão que se podia extrair era que o culpado pela separação não tinha direito a alimentos, mesmo que deles necessitasse. Somente o responsável pela separação tinha a obrigação de pagar alimentos a quem não havia dado causa ao fim do casamento. Exclusivamente o inocente fazia jus à pensão alimentícia. Até a  simples iniciativa judicial de buscar a separação excluía o direito de pleitear alimentos.

 

Nada previa a lei divorcista sobre a obrigação de sustento quando não se conseguisse identificar qual dos cônjuges era o culpado, bem como nada era dito se fosse reconhecida a culpa de ambos pelo fim do casamento. Dessa tarefa desincumbiu-se a jurisprudência, admitindo a obrigação mesmo quando não identificadas responsabilidades. Reconhecida a culpa recíproca, simplesmente não se cogitava de alimentos.

 

A separação judicial – tal como o desquite – rompe, mas não dissolve a sociedade conjugal, ao contrário do que ocorre no divórcio, que põe fim ao casamento. Ainda assim, mesmo findo em definitivo o matrimônio, perdura o dever de mútua assistência, uma vez que permanece a obrigação alimentar entre o par depois de divorciados. Apesar de a Lei do Divórcio não dizer isso expressamente, não se pode chegar a outra conclusão. Estabelece a lei que cessa o crédito alimentar somente pelo novo casamento do beneficiário. Como só há a possibilidade de novo casamento após o divórcio, o dispositivo deixa claro que persiste o encargo mesmo estando os cônjuges divorciados.

 

A Lei do Divórcio assegurava alimentos somente ao cônjuge inocente, pois se tratava de encargo imposto ao culpado pelo término da sociedade conjugal. Por conseqüência, a demanda alimentícia necessariamente envolvia a perquirição da causa do rompimento da vida em comum para responsabilizar um de prover o sustento do outro. O autor da ação, para ser contemplado com alimentos, necessitava provar, além de sua necessidade, sua inocência, bem como a culpa do réu.

 

Já na legislação que regulamentava a união estável, em matéria de alimentos, os conviventes gozavam de uma situação privilegiada, se confrontada com o casamento. Quando da regulamentação infraconstitucional do novo instituto, o encargo alimentar não restou condicionado à postura dos parceiros pelo fim do relacionamento. A ausência do elemento culpa pelo término da união estável limitava, com vantagem, o âmbito de cognição da demanda alimentária, se comparada com a ação decorrente da relação de casamento. Tal incongruência passou a ser encarada pela jurisprudência como nítida afronta ao princípio da isonomia. Como a Justiça não consegue conviver com o imponderável, nem dar tratamento diferenciado e mais restritivo a direitos de igual natureza (eis originários de uma vinculação afetiva), passou a ser dispensada a perquirição da culpa quando a lide envolvesse cônjuges.

 

No Código Civil vigente, a responsabilidade alimentar recebeu tratamento único. De modo expresso, o artigo 1.694 prevê a possibilidade de parentes, cônjuges e companheiros pedirem alimentos uns aos outros para viver de modo compatível com a sua condição social. Todos os beneficiários, filhos, pais, parentes, cônjuges, companheiros, enfim, todos os que fazem jus a alimentos têm assegurado a mantença do padrão de vida que sempre desfrutaram.

 

A grande novidade introduzida na nova consolidação civil foi conceder, mesmo ao culpado pelo nascimento do encargo – ou seja, o culpado pela separação – direito a alimentos. A diferença é meramente quantitativa. Os alimentos permitem viver de modo compatível com a condição social. Ao culpado, no entanto, o valor dos alimentos é restrito a garantir sua sobrevivência. Essa dicotomia trouxe para a esfera legal a diferenciação entre alimentos civis e naturais, consolidando diferenciação de há muito sustentada pela doutrina e que dispunha de livre trânsito na jurisprudência. A distinção entre alimentos para viver de modo compatível com a condição social e alimentos em valor indispensável à sobrevivência era feita ao se quantificarem alimentos devidos aos filhos e alimentos a serem pagos ao ex-cônjuge. Enquanto o encargo decorrente do poder familiar era fixado em valor proporcional às condições econômicas do genitor, os alimentos com origem no casamento se limitavam a atender à necessidade do alimentando de forma a prover sua subsistência com dignidade. Somente os filhos, e não os cônjuges ou companheiros, tinham direito de viver com a mesma qualidade de vida do alimentante.

 

A diferenciação introduzida no Código Civil, no entanto, tem distinto pressuposto, pois serve exclusivamente para limitar os alimentos em favor do culpado pelo surgimento do estado de necessidade, sem questionar quem são os benefíciários. Assim, persiste a intenção do legislador de punir o responsável pelo surgimento do encargo alimentar. Ainda que sem o rigorismo anterior, continua sendo penalizado quem ousa se afastar do casamento adotando atitudes inadequadas à vida em comum. Somente perceberá o quanto baste para sobreviver.

 

Não diferencia a lei nem a natureza nem a origem da obrigação para restringir o valor do pensionamento em favor de quem dá ensejo à exigibilidade da obrigação. Tornou-se necessário identificar não só a culpa do cônjuge. A responsabilidade de todos os credores de alimentos também precisa ser perquirida. Portanto, nas demandas alimentícias de qualquer ordem passou a haver a necessidade de desvendar o motivo do surgimento da obrigação  para a fixação do valor da pensão alimentar. A penalização atinge todo e qualquer beneficiário que culposamente tenha dado causa à necessidade alimentícia. Pelo que está posto na lei, a restrição quantitativa do valor dos alimentos ocorre até quando o ônus decorre das relações de parentesco. Dita limitação tem sido alvo de acirradas críticas.

 

Ainda que não se possa deixar de reconhecer que a limitação constante do § 2º do artigo 1.694, referente à culpa do alimentando, também se dirige aos parentes e aos egressos da união estável, os dispositivos legais que, de forma mais incisiva, restringem a obrigação a simples garantia de subsistência fazem menção exclusivamente à relação de casamento. Tanto o artigo 1.702 como o artigo 1.704 e seu parágrafo único falam em “separação judicial”, “cônjuge inocente”, “cônjuge separado judicialmente” e “cônjuge declarado culpado”, levando em consideração a postura dos partícipes da relação de casamento. Assim, parece que somente quando buscados alimentos entre cônjuges é que a lei questiona a conduta do autor da ação no desenlace da convivência marital, em face da possibilidade de o valor do encargo sofrer limitações. Em vez de os alimentos garantirem a mantença da condição de vida do ex-cônjuge, podem ser fixados em montante a permitir-lhe exclusivamente o atendimento do mínimo vital. Porém, quando a origem do encargo alimentar decorre de um relacionamento estável, não há dita limitação. O convivente, ao acionar o ex-companheiro, não está sujeito a questionamentos sobre sua eventual culpa pelo fim da união de fato. Exclusivamente o cônjuge estaria sujeito ao risco de sofrer o achatamento do valor dos alimentos e os ver limitados a assegurar sua sobrevivência. Na união estável, como nada é perquirido a respeito da postura dos conviventes, os alimentos sempre seriam fixados de forma a permitir que o ex-parceiro viva de modo compatível com a condição social que usufruía durante a vida em comum.

 

Não há como não visualizar nesse discrímine legal afronta ao princípio da isonomia. Faltando razoabilidade à diferenciação levada a efeito pela lei, mister eliminar a culpa para o efeito de fixar alimentos ao cônjuge. Impositivo acabar com essa distinção, que não se coaduna com o sistema jurídico. A jurisprudência necessita continuar com a mesma orientação e ignorar injustificáveis diferenciações. O raciocínio que prevaleceu em face das distinções discriminatórias entre as leis reguladoras do divórcio e da união estável precisa ser novamente invocado. Descabe diferenciar cônjuges e conviventes, casamento e união estável.

 

As previsões legais que ensejam redução dos alimentos, sendo excludentes de direitos, merecem interpretação restritiva. Como a lei não impõe limitações quantitativas ao valor dos alimentos na união estável, não pode estar sujeita a tais restrições a obrigação decorrente da relação de casamento. Tanto os cônjuges como os conviventes não devem estar sujeitos à identificação de culpa ou de inocência, quer quem precisa de alimentos, quer quem deve pagar alimentos. É necessário subtrair toda e qualquer referência de ordem motivacional sobre o desenlace do vínculo afetivo tanto para deferir alimentos como para quantificar o seu valor. Assim, no casamento e na união estável, sendo o cônjuge ou o convivente desprovido de recursos, o outro lhe pagará pensão alimentícia. Mais uma vez, a solução é invocar os princípios da igualdade e simplesmente não condicionar o quantum alimentar à conduta culposa do par.

 

Imperioso é ressaltar que somente a restrição quanto à culpabilidade é que cabe ser afastada. No que o caput do artigo 1.704 tem de vantajoso, ou seja, ao agregar benefícios em favor da relação de casamento, é necessário estender seu âmbito de incidência à união estável, sob pena de se infringir mais uma vez o dogma da igualdade. Por conseqüência, cônjuges e companheiros têm direito a alimentos, mesmo depois de cessada a vida em comum. Desse modo, se depois de separados, não só o cônjuge, mas também o convivente vier a necessitar de alimentos, será o outro obrigado a prestá-los. Essa é a única leitura que se pode fazer do texto da lei. Outro não pode ser o raciocínio, sob pena de se afrontar a principiologia constitucional que sustenta o sistema jurídico. Mais. Como os alimentos são irrenunciáveis, ainda que tenha havido renúncia, desistência ou mera dispensa na separação, no divórcio ou na dissolução (contratual ou judicial) da união estável, qualquer dos cônjuges ou conviventes pode a qualquer tempo pleitear alimentos. Basta exsurgir a necessidade.

 

Seqüela outra decorre de uma leitura mais atenta de tais dispositivos legais. Afastada a causa prejudicial para a constituição da obrigação alimentar, qual seja, a identificação da responsabilidade pelo fim do casamento, resta esvaziado de conteúdo o parágrafo único do artigo 1.704. Necessidade e possibilidade são os únicos balizadores para estabelecer a obrigação alimentar. Esse direito pode ser reconhecido quando do fim da relação ou em momento posterior, depois de o par já se encontrar apartado, quer pela separação judicial, quer pelo divórcio, quer pelo término da união estável. Descabido dar tratamento diferenciado a cônjuges e conviventes. Excluído o elemento culpa, não há como subsistirem as outras limitações constantes no referido parágrafo. Como não mais se questiona culpa para a concessão de alimentos, o culpado faz jus à pensão alimentar. Não é possível outra conclusão ao extirpar-se da lei o que ela tem de inconstitucional. Basta aferir a necessidade de quem pede e a possibilidade daquele a quem se pede para ser imposto o dever de alimentos. Não mais permanecem os pressupostos limitantes do parágrafo único do artigo 1.704. Como não se pode mais falar em culpa, não há motivo para repassar o encargo a parentes com condições de prestar os alimentos. Igualmente, a capacidade laborativa do alimentando não carece ser investigada. Cabe, tão-só, aferir a presença do binômio possibilidade-necessidade. E, como necessidade não se confunde com potencialidade para o desempenho de atividade laboral, a existência de condições para o trabalho não veda a concessão de alimentos. Somente a ausência da necessidade, ou seja, a percepção de ganhos capazes de prover a própria subsistência é que pode liberar o cônjuge ou companheiro do dever de pagar alimentos. Portanto, mesmo sendo culpado, mesmo tendo parentes em boas condições financeiras, mesmo possuindo aptidão para o trabalho, tanto o cônjuge como o companheiro podem pleitear alimentos do ex-parceiro.

 

Merece aplausos a novidade introduzida pela nova lei, que afasta o caráter punitivo da obrigação alimentar, postura que se afina com as legislações mais modernas e a doutrina contemporânea que atenta na dignidade da pessoa humana. Negar alimentos a quem necessita é, quiçá, condenar à morte quem cometeu o crime de se afastar do casamento. Ainda que conflitos surjam ao término de alguns relacionamentos afetivos, não há uma guerra declarada, única hipótese em que a Constituição Federal prevê a pena de morte.

 

 

* Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões. Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS. Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

 

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. Alimentos sem culpa. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/alimentos-sem-culpa/ Acesso em: 28 mar. 2024