Direito Civil

Padecer no paraíso

Padecer no paraíso

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

Todo mundo conhece a célebre estrofe do verso de Coelho Neto: Ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração; ser mãe é padecer no paraíso.

 

Pois a Justiça resolveu levar este vaticínio ao pé da letra, e para isso nem se  preocupou em afrontar a lei. O art. 1.696 do Código Civil, que repete a regra do art. 397 da Codificação de 1916, com clareza diz: O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns na falta de outros. Também não falta clareza ao novo artigo 1.698, sem correspondência na legislação revogada: Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato (…).

 

De maneira surpreendente, a tendência da jurisprudência tem sido ignorar esses dispositivos legais, sob o seguinte fundamento: a obrigação é dos pais. Na omissão de um dos pais o ônus passa para o outro. Somente se ambos os genitores não têm condições de prover o sustento dos filhos é que se invoca a responsabilidade dos avós. Segundo esse raciocínio, se está impondo ao genitor, que tem o filho em sua companhia, que arque sozinho com o seu sustento.  Basta o guardião estar inserido no mercado de trabalho, ter alguma gratificação profissional ou simplesmente desempenhar atividade que gere algum rendimentos, para ser responsável exclusiva pela mantença da prole. Caso o outro genitor não pague alimentos, não pode se socorrer de mais ninguém. Sequer pode invocar a responsabilidade dos avós pela mantença dos netos.

 

Como, dentro de nossa realidade social, o filho geralmente fica sob a guarda da mãe, é ela quem resta onerada. Além da já famosa dupla jornada de trabalho, que compreende a administração do lar e o encargo da criação, educação e orientação da prole, se o genitor não paga o encargo alimentar, terá ela que sozinha prover o sustento dos filhos. Basta ter algum ganho, nem que seja para complementar a minguada pensão do filho.

 

Contra clara disposição legal vem sendo afastada a obrigação complementar e subsidiária dos ascendentes. O avô, independente de desfrutar de confortável situação de vida e ter ganhos que permitam com tranqüilidade auxiliar no sustento dos netos, não está sendo chamado a contribuir. Não é reconhecida sua obrigação pelo fato de a mãe ter algum tipo de rendimento. Nem sequer se atende ao critério da proporcionalidade entre o salário da guardiã e a situação econômica do avô. Basta a genitora auferir qualquer renda para afastar a responsabilidade dos ascendentes.

 

O fato de a lei atribuir aos pais o poder familiar tem levado ao entendimento de que o uso da palavra pais significa cumulatividade e alternatividade, querendo dizer ambos os pais, e não qualquer dos pais. Com isso se está gerando uma desarrazoada solidariedade, verdadeira angularização da obrigação alimentar. Ou seja, o fato de um dos pais ter rendimentos gera a irresponsabilidade tanto do outro genitor como de seus ascendentes. Simplesmente por estar grafada no plural a identificação dos obrigados pela criação e educação dos ascendentes, vem alguns julgados interpretando que se transmite de um genitor ao outro essa obrigação, só se conclamando os avós na hipótese de nem o pai e nem a mãe terem condições de atender à mantença dos filhos.

 

Dita equivocada interpretação da lei, além de livrar a responsabilidade dos avós, sinaliza o surgimento de um perigoso antecedente: a desobrigação de um dos pais de prover o sustento do filho, se este reside com o genitor que tem meios de atender à própria subsistência. Como pela prática usual é a mãe que fica com a guarda dos filhos, transfere-se do homem para a mulher a obrigação de prover sozinha a família. Assim, mais um ônus lhe é atribuído, de, com exclusividade, criar a prole. Basta que, além de ter o filho sob sua guarda, desempenhe atividade que lhe traga algum benefício econômico, ainda que modesto. O inadimplemento do genitor onera somente a genitora pelo sustento do filho.

 

Essa orientação pode levar a situações absurdas: se o pai não paga, paga pouco, paga atrasado ou paga a menor, tendo a mãe algum ganho, ainda que singelo, deve assumir o encargo com exclusividade. A alegação de que ela tem meios de sustentar sozinha o filho, pode servir para desobrigar o genitor. Comprovando ele que a guardiã não deixou o filho morrer de fome, isto é, vem conseguindo mantê-lo vivo, pode livrar-se da obrigação para com o filho comum. Liberta-se o pai de toda e qualquer responsabilidade.

 

Isso tudo pode ocorrer sem atentar em que a obrigação parental não é somente o pagamento de alimentos. Há um leque de encargos que não se mensuram monetariamente. Separado o casal, o pai, na maioria dos casos, nem ao menos divide os deveres de criação e educação do filho, pois raramente reconhece sua responsabilidade de acompanhar o seu desenvolvimento ou dar-lhe alguma orientação. De forma freqüente não assume qualquer ônus e sequer exerce a obrigação de visitas. Nem na festa do Dia dos Pais ele vai…

 

Para essas omissões não existe qualquer seqüela, não há nenhum meio legal de coibir as omissões paternas. Agora, pelo jeito, se encontrou uma justificativa para livrar o pai inclusive da obrigação de pensionar o filho. Ainda que a lei diga que o encargo alimentar existe, está a justiça tirando até este dever do pai e transferindo-o para a mãe. O raciocínio é simplista: se ela tem condições, ele não precisa pagar alimentos, fato que isenta também seus ascendentes de cumprir obrigação imposta por lei. Mesmo que tenha o avô privilegiada situação econômica, nem assim será chamado a complementar a omissão do filho de prover o sustento de seu neto. Somente na hipótese de a genitora não ter nenhum recurso é que se invocará a responsabilidade subsidiária e complementar do avô. Mas, se a mãe tem algum ganho, para acioná-lo será necessário que abandone seu trabalho ou atividade.

 

Urge que se cumpra a lei, que cesse essa interpretação que, além de gerar enormes sacrifícios à mãe, também restringe o sagrado direito das crianças e dos adolescentes de que lhes seja assegurado um mínimo vital para se desenvolverem de maneira digna. Mister, pois, mais do que reconhecer, é imperioso denunciar a leitura discriminatória e machista que se está fazendo da lei.

 

Essa jurisprudência, além de divorciada da realidade e distante de qualquer razoabilidade, está exigindo uma dose exacerbada de sacrifício a quem assumiu a sublime missão de ser mãe. Quem sabe melhor seja inserir no Código a célebre frase: Quem pariu que embale!… mas também crie, oriente, alimente, sustente e… agüente, tudo sozinha!

 

 

 

 

* Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões. Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS. Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

 

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. Padecer no paraíso. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/padecer-no-paraiso/ Acesso em: 29 mar. 2024