Direito Civil

A estatização do afeto

A estatização do afeto

 

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

O termo escolhido para titular o tema é amplo, porque amplo é o espectro do afeto, mola propulsora do mundo e que fatalmente acaba por gerar conseqüências que necessitam se integrar no sistema normativo legal.

 

Sob a justificativa de estabelecer padrões de moralidade e regulamentar a ordem social, o Estado solenizou os vínculos afetivos, transformando a família em uma instituição matrimonializada. As relações denominadas espúrias, adulterinas ou concubinárias nenhum direito possuíam. Os filhos havidos fora do casamento sempre foram alvo de enorme gama de pechas de conteúdo pejorativo e discriminatório. Seu destino era a invisibilidade, pois não podiam buscar o reconhecimento da própria identidade.

 

              O Estado, com sua onipotência, não se limita a chancelar o casamento e atribuir responsabilidades ao casal. Interfere na sua vida íntima, impondo deveres e assegurando direitos, como fidelidade recíproca, vida em comum e mútua assistência. A vontade dos nubentes pouco vale. Apenas é levada em conta no momento da solenização do casamento, não possuindo qualquer relevância após proferida a palavra “sim”. Diante da quantidade de cláusulas, condições e regras impostas pela lei, é possível concluir que o casamento não passa de mero “contrato de adesão”.

 

Essa ingerência, nitidamente descabida, é juridicamente ineficaz, pois o descumprimento de qualquer dos deveres não gera a possibilidade de buscar seu adimplemento por decisão judicial. Ou seja, estabelecidos para vigorar durante a vida em comum, os deveres conjugais são úteis para justificar o pedido de separação, outorgando legitimidade à busca da separação, na medida em que permitem imputar ao infrator a culpa pelo fim do amor. Mas, na vigência da sociedade conjugal, o descumprimento desses deveres por um ou ambos os cônjuges em nada afeta a existência, a validade ou a eficácia do casamento.

 

Celebrado o casamento, está constituída a família, a qual se transforma na base da sociedade, passando a merecer a especial atenção do Estado, que, talvez por isso, se insurge contra sua dissolução.

 

Em um primeiro momento, o casamento era indissolúvel. A Lei do Divórcio passou a chamar de separação o que antes se chamava de desquite, situação sui generis que faz cessar os ônus matrimoniais, mas, por não dissolver o vínculo do casamento, impede o separado de casar novamente.

 

Persiste insuficiente, ainda hoje, a vontade dos cônjuges para encerrar um casamento, mesmo quando este tenha começado por exclusiva vontade do par. Ainda que haja consenso das partes, mister que estejam casados há mais de dois anos para obter a separação. Somente depois do decurso de mais um ano é que podem transformar a separação em divórcio. Igualmente o divórcio só pode ser buscado se já estiverem os cônjuges separados de fato há mais de dois anos.

 

É curioso que, após o decurso do prazo de um ano do fim da vida em comum, o Estado se desinteressa de identificar e punir o responsável pelo rompimento do vínculo afetivo. Antes de decorrido esse prazo, somente o cônjuge “inocente” pode buscar a separação, devendo atribuir e provar a culpa ao réu, requisito que o Judiciário, em boa hora, auscultando a melhor doutrina, vem desprezando.

 

Não só em relação ao casamento ocorre a interferência estatal na vida afetiva das pessoas. Os vínculos de convivência formados sem o selo da oficialidade ingressaram no mundo jurídico por obra da jurisprudência, sob o nome de concubinato. Tais estruturas familiares acabaram aceitas pela própria sociedade civil, o que impôs à Constituição de 1988 dar abrigo à união que chamou de estável, enlaçando-a no conceito de entidade familiar. A legislação infraconstitucional que veio regular essa nova espécie de família acabou praticamente copiando o modelo oficial do casamento. Estabeleceu requisitos para o seu reconhecimento. Impôs deveres e criou direitos. Assegurou alimentos e estabeleceu regime de bens. Inseriu o convivente na ordem de vocação hereditária e instituiu usufruto, bem como concedeu direito real de habitação. Aqui, também, pouco resta da vontade do par, e o dirigismo estatal transformou a união estável em um verdadeiro “casamento por decurso de prazo”.

 

No momento histórico em que o formato hierárquico da família cedeu à sua democratização, não mais existem razões que justifiquem essa excessiva e indevida ingerência do Estado na vida das pessoas.

 

A esfera privada das relações conjugais tende cada vez mais a repudiar a interferência do poder público, não se podendo deixar de concluir que está ocorrendo uma verdadeira e injustificável estatização do afeto.

                                   

 

* Advogada especializada em Direito Homoafetivo, Famílias e Sucessões. Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS. Vice-Presidente Nacional do IBDFAM

 

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. A estatização do afeto. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/a-estatizacao-do-afeto/ Acesso em: 29 mar. 2024