Direito Civil

Afinal, quem é a mãe de Vitória?

Todos sabem que há muitos casos de filhos de pais desconhecidos, mas filho de mãe desconhecida parece impossível.

No entanto, graças aos avanços da Medicina pode haver hoje filho de mãe controversa em que duas supostas mães reivindicam a maternidade. E análises do
ADN não podem dirimir a dúvida

É justamente o caso que apareceu na novela Fina Estampa da TV Globo em que tanto Esther quanto Bia se consideram mãe do bebê Vitória.

Desejosa de ter um filho, mas não estando capacitada para tal coisa, porque seu marido era estéril, Esther procura a médica Dra. Fraser, especialista
em gravidez assistida.

Tal forma de gravidez consiste em implantar no útero de uma candidata à mãe um óvulo de outra mulher fecundado pelo espermatozóide de outro homem que
não seu marido ou companheiro.

Num caso como esse, devem ser tomadas várias precauções de praxe: os doadores e a beneficiada pelo óvulo fecundado têm que permanecer no anonimato. Não
só suas identidades devem ser mantidas em sigilo como também a identidade da gestante.

Pelo exame do ADN, o médico pode apresentar várias características genéticas terciárias para que a paciente escolha o tipo de sua preferência, porém
manter em sigilo a identidade dos portadores dessas características.

Tomadas as precauções necessárias, o óvulo fecundado é implantado no útero de Esther e, passado o período de gravidez, ela dá a luz a uma menina a que
dá o nome de Vitória.

So far so good , até aqui tudo bem.

Acontece, porém, que a secretária da médica acaba descobrindo nos arquivos da Clínica Fraser a identidade dos portadores do óvulo e do espermatozóide.

A jovem fica perplexa e aturdida ao constatar que os doadores são o irmão da Dra. Fraser e sua namorada com a qual ele ia se casar, não tivesse ele
morrido num acidente.

Sendo ambos conhecidos por ela, ela acha que a Dra. Fraser fez algo errado procurando pessoas relacionadas como doadores.

. Assim sendo, diz que a Dra. Fraser tem a obrigação de revelar a Bia que o óvulo usado era o dela e o espermatozóide de seu falecido irmão. E caso ele
não faça isso, a secretária diz que é seu dever denunciar o caso ao Conselho Regional de Medicina.

Por motivos que não vem ao caso aqui, o acontecimento acaba sendo conhecido pela mídia e divulgado em larga escala.

Esther e Bia cada qual reivindicando a maternidade de Vitória com a mesma ênfase e as outras personagens da novela umas dando razão a uma, outras dando
a outra.

Reparemos que este é um caso cuja decisão não pode ser tomada por uma análise do ADN de Bia e Esther, pois ele mostraria o que já é sabido: a criança é
geneticamente filha de Bia, embora tenha sido gestada no útero de Esther.

Mas é justamente aí que está o busílis da questão: Vitória é resultado da fecundação de um óvulo de Bia, mas da gestação e amamentação de Esther.

A seu favor, entre outras coisas, Esther alega um fato verdadeiro que não é contestado por Bia. Afirma que Bia fez um trato com a Dra. Fraser mediante
o qual abria mão de seu óvulo para que ele fosse fecundado pelo espermatozóide de um desconhecido.

Há algum tempo, ocorreu um caso semelhante nos Estados Unidos.

Neste caso, foi feito um trato entre uma “doadora” de um óvulo e uma gestante do mesmo. Só que a “doadora”, não podendo engravidar, pagou determinada
quantia a uma “barriga de aluguel”.

Ela não “doou” precisamente seu óvulo fecundado in vitro, mas sim permitiu que o mesmo fosse gestado no ventre de outra devidamente paga pelo
serviço prestado.

Nascida a criança e tendo recebido seu dinheiro pelo aluguel de seu útero, a gestante caiu em si e quis “seu filho” de volta mediante a devolução do
dinheiro recebido.

A “doadora” do óvulo se recusou a desfazer o trato, um acordo de cavalheiros (ou de damas, neste caso).

O caso foi parar na Justiça e o magistrado decidiu a favor da “doadora” sob a justificativa de que tinha sido feito um trato de livre acordo entre as
partes.

A doadora tinha cumprido sua parte pagando o dinheiro prometido e tinha o direito de receber uma contrapartida que consistia na entrega da criança.

Contudo, há diferenças nos dois casos. No caso de Vitória houve de fato uma doação. Não ficou esclarecido na novela se Bia recebeu pagamento ou se o
fez por motivo humanitário de prestar uma colaboração a um casal anônimo.

E Esther não desempenhou exatamente o papel de uma barriga de aluguel, uma vez que não alugou seu útero recebendo pagamento pelo aluguel, mas sim
gestou um filho muito desejado por ela.

Bia, por sua vez, ao saber que o óvulo foi dela fecundado por alguém que ela amava e com quem pretendia se casar, ficou atordoada e passou a perseguir
Esther exigindo sua  “legítima filha” Vitória.

As reivindicações de ambas são plausíveis e é bastante compreensível que tanto uma como a outra se considere a verdadeira mãe, mas daí a dizer qual das
duas tem razão é muito difícil.

Isso nos lembra o famoso julgamento de Salomão. Duas mulheres se apresentaram diante dele e ambas reivindicavam ser a mãe de um recém-nascido.

Aí então, Salomão chamou um soldado e disse para ele cortar o bebê ao meio e dar a cada qual uma metade.

O soldado ia executar a ordem do rei quando uma das mulheres disse em desespero: “Não faça isso, eu dou a criança inteira para ela” (a outra).

Salomão ordenou então que a criança fosse entregue à mulher que fez a interpelação, pois estava certo de que se tratava da verdadeira mãe, uma vez que
ela preferia abrir mão de seu filho a vê-lo morto.

Sábia decisão salomônica que infelizmente não pode ser aplicada ao caso de Vitória.

A época é outra. Naqueles tempos bíblicos, não havia barriga de aluguel nem gravidez assistida, nem muito menos Salomão podia pedir uma análise do ADN,
para tomar uma decisão segura.

No entanto, ele tomou uma decisão justa graças ao seu profundo conhecimento do coração humano.

No decorrer de Fina Estampa, é bastante provável que o caso de Vitória acabará indo parar na Justiça e caia na mão de um juiz da Vara de
Família.

Se ele fosse um filósofo e deparasse com um caso em que não tivesse condição de tomar uma decisão bem fundamentada, poderia praticar a epoché,
i.e. suspender seu juízo. Mas magistrados, por dever de ofício, são obrigados a tomar uma decisão, ainda que não estejam convencidos da validade da
mesma.

O mesmo podemos dizer da Comissão de Ética do Conselho Regional de Medicina, que foi convocada para julgar o caso da Dra. Fraser e, como era obrigada a
tomar uma decisão, decidiu cassar o diploma da médica.

Em nosso ver, uma medida fortemente injusta, uma vez que ele não cometeu nenhum erro médico. Quando muito cometeu uma falha ética devendo ser punida
com uma severa advertência ou uma suspensão.

Mas como há um processo movido pelo advogado de Bia, um juiz de família terá que decidir quem deve ser a mãe de Vitória: Esther ou Bia? Na realidade,
ele terá que optar pela “mãe biológica” (Bia) ou pela “mãe gestante”.(Esther).

Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mário Antônio de Lacerda. Afinal, quem é a mãe de Vitória?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2012. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/afinal-quem-e-a-mae-de-vitoria/ Acesso em: 28 mar. 2024