Direito Civil

Dos limites ao exercício das servidões – uma visão privatista – Parte 1

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SUMÁRIO: CAPÍTULO I. 1-BREVÍSSIMA NOTÍCIA DOS LIMITES DAS SERVIDÕES NO  DIREITO ROMANO – CAPÍTULO II. 1-  CONCEITO – 2- ELEMENTOS CONSTITUTIVOS OU DE CARACTERIZAÇÃO – 2.1 Instituição sobre prédios distintos –                     2.2 Prédios vizinhos – 2.3 Obrigação negativa – 2.4 Direito estabelecido em proveito de um prédio -3 – NATUREZA JURÍDICA –  4 – PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS                     4.1 Inseparabilidade – 4.2 Perpetuidade – 4.3 Indivisibilidade – 4.4 Inalienabilidade – 4.5 Impresumibilidade – 5 – FINALIDADE   6 ESPÉCIES DE SERVIDÃO – 6.1 Quanto à forma – 6.1.1 Urbanas ou rústicas – 6.1.2 Contínuas e descontínuas – 6.1.3 Aparentes e não aparentes – 6.2 Quanto à espécie – 6.2.1 Positiva e negativa – 7 – CONSTITUIÇÃO DAS SERVIDÕES –  7.1 Constituição por atos voluntários – 7.1.1 Contrato (ato bilateral) – 7.1.2 Testamento (ato unilateral) – 7.1.3 Destinação do proprietário ou do pai de família – 7.2 Constituição por atos externos – 7.2.1 Usucapião – 7.2.2 Sentença Homologatória – CAPÍTULO III –  1 – LIMITES NO EXERCÍCIO DAS SERVIDÕES – 1.1 O objeto e o exercício civiliter modo – 1.2 A finalidade e a necessidade – 1.2.1 O elemento finalidade e a sua função limitadora – 1.2.2 O princípio do limite ao necessário – 1.2.3 Necessidade x adminicula servitutis – 1.3 Os costumes são elementos que limitam o exercício da servidão? – 2 – LEGISLAÇÃO COMPARADA – 2.1 Os limites da servidão no Código Civil francês – 2.2 Os limites da servidão no Código Civil italiano – 2.3 Os limites da servidão no Burgiliches Gesetcbuch – 2.4 Os limites da servidão no Código Civil português –  3 – JULGADOS – CAPÍTULO IV – 1 – ABUSOS NO EXERCÍCIO DAS SERVIDÕES – CONCLUSÃO

 

 

 

 

RESUMO

 

 

Entre as limitações ao direito absoluto de propriedade, na categoria dos iura in rebus alienis, está o instituto da servidão, que se apresenta como um direito real e acessório, segundo o qual se estabelece um encargo que é suportado por um fundo serviente, em favor de outro fundo, o dominante. É certo, de outra parte, que o proprietário do prédio dominante deve exercer o seu direito de servidão nos limites que ele comporta, sendo de irrefragável importância saber quais são eles e quais as conseqüências de sua não observância. O trabalho que se segue procura estudar os limites do exercício das servidões no direito romano, seus variados conceitos, caracteres de formação, natureza jurídica, princípios, finalidade, classificação e elementos constitutivos, para realizar, em seguida, sob o triangular prisma da doutrina, lei e costumes, uma análise minudente desses limites e as ocasiões que eles ensejam o exercício abusivo de direito, alcançando, por esse meio, a desanuviada conclusão que o uso civiliter modo, o objeto, a finalidade e a necessidade são os elementos que restringem o exercício das servidões e servem, outrossim, como parâmetros na verificação dos atos abusivos. Urge, pois, que se proceda à analise desses limites no escopo de facilitar a solução dos  litígios que envolvem o assunto.

 

Palavras – chave: iura in re aliena – servidões – limites – exercício.

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

O tema que será desenvolvido na presente pesquisa diz respeito aos limites no exercício das servidões sob uma visão privatista.

 

Freqüentemente apontado como um direito que está sendo a cada dia constitucionalizado, o instituto da servidão ainda pode ser visto, ao menos sob o prisma do direito privado, de maneira restritiva, adquirindo status de um direito real sobre coisa alheia que condiciona a utilização de um prédio (serviente) a suportar determinados comportamentos (não fazer) praticados por outro prédio (dominante). 

 

Não obstante, em razão de ser a servidão direito que restringe o uso “absoluto” da propriedade, questão que se impõe é a de saber quais os limites do uso da servidão e até aonde vai a sua extensão, posto que, assim como um prédio (serviente) deve sofrer restrições a sua disponibilidade, o dono do prédio dominante deve exercer a servidão valendo-se de determinados parâmetros para que não ultrapassasse o seu direito.

 

Destarte, para responder a essa indagação é necessário que o trato do assunto se desenvolva metodicamente, impondo-se, dessa forma, uma sistematização em Capítulos que facilitem o seu entendimento.

 

Assim, o Capítulo I dessa pesquisa tem caráter propedêutico e consiste numa breve notícia histórica das servidões no Direito Romano, na qual se abordará, ligeiramente, a origem do instituto da servidão e dos elementos que, àquela época, limitavam o seu exercício.

 

No Capitulo II, na esteira da mais abalizada doutrina, serão assentados os diversos conceitos acerca das servidões, buscando-se, em seguida, ressaltar os elementos que dão existência a este instituto e que o situam no mundo da sistemática jurídica, não deixando de levar em conta seus princípios norteadores, bem como a sua classificação e modo de constituição.

 

No Capítulo III, desenvolve-se o cerne do trabalho, destacando-se, segundo a doutrina dominante, quais os elementos que limitam o exercício das servidões. Procura-se realçar, neste Capítulo, os artigos que ditam algumas limitações ao seu exercício, observando-se o assunto no fulgor da legislação alienígena e buscando substrato na jurisprudência dos pretórios pátrios.

 

Por fim, no Capítulo IV, comparam-se os elementos que limitam o exercício da servidão com o instituto do abuso de direito, trazendo à tona o pensamento da doutrina brasileira e o entendimento dos Tribunais nacionais.

 

Bem da verdade é que, não envolvendo a tese qualquer polêmica e pretendendo apenas devassar os limites da servidão no âmbito doutrinário, legislativo e jurisprudencial, nesta pesquisa monográfica procura-se, tão-somente, delinear quais os limites para o exercício de uma servidão e se estes servem como craveiras para configuração do abuso de direito.

 

Em sendo assim, almeja-se, em primeiro, tracejar a origem histórica da servidão no intuito de esclarecer em que critérios se pautavam os povos antigos para permiti-la e delimitá-la. Segundo, pretende-se conceituar o instituto da servidão no desiderato de contextualizar os elementos que restringem o seu exercício. Terceiro, procura-se trazer a lume os elementos limitadores do uso das servidões, ambicionando verificar quais são eles e como vêm sendo tratados pela doutrina, legislação e jurisprudência. Quarto, indica-se quais as normas brasileiras e estrangeiras que tratam do tema, com a pretensão de explicitar os artigos que realçam algumas limitações ao uso da servidão. E, por derradeiro, dentro desse quadro específico, delineia-se como os componentes limitadores ao exercício das servidões servem para constatar um eventual uso abusivo desse direito.

 

É de bom talante precisar, desde já, que a importância da presente pesquisa verifica-se em razão dos litígios que envolvem o uso das servidões, e das dificuldades práticas em utilizar-se dos elementos que compõem os seus limites para constatação do abuso de direito.

 

A propósito, autores do mais alto quilate procuraram discorrer acerca do assunto ora em análise, sendo o brilhante Pontes de Miranda (1957) um dos que muito demoraram no seu trato, registrando em seu clássico Tratado de Direito Privado que devem os juristas ater-se com maior atenção na distinção entre o conteúdo e exercício das servidões, para só depois indicar quais os limites no seu exercício e em que momento esses passam a ser abusivos.

 

Por sua vez, o preclaro Carvalho Santos (1991) aborda em seus comentários ao Código Civil de 1916 que na observação dos limites da servidão o ponto nevrálgico que se deve realçar é o da extensão dos atos necessários ao seu exercício, passando a preceituar, em seguida, que a não observância dessa extensão conduz ao uso abusivo desse iura in re aliena .  

 

Já Clóvis Beviláqua (1979), civilista que desfruta de largo prestígio, é enfático ao indicar as maneiras de como exercer uma servidão e as conseqüências de sua inobservância.

 

Apesar das luzes que irradiam da autoridade desses eminentes juristas, para a elaboração do trabalho em apreço, assenhoreou-se, também, dos escritos daqueles que no estrangeiro foram e continuam sendo os grandes especialistas na matéria: Roberto de Ruggiero (1999); Aubry e Rau (1935) e Colin e Capitain (1919).

 

 Por fim, diga-se que, para atingir os objetivos propostos, a presente investigação monográfica se deu em três etapas, em que, num primeiro momento, trabalhou-se em pesquisa bibliográfica nas doutrinas pátria e estrangeira especializadas; pesquisando-se na biblioteca do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, na biblioteca da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, na biblioteca da Faculdade Natalense para Desenvolvimento do Rio Grande do Norte e na biblioteca do prof. Giuseppi da Costa.  

 

Numa segunda etapa, valeu-se de uma análise na legislação nacional e alienígena na qual observaram-se os artigos 702 e 704 do Código Civil Brasileiro de 1916; o artigo 1.385 do Código Civil Pátrio de 2002; os artigos 637 e 702 do Código Civil Francês; os artigos 1.119 e 1.020 do Código Civil Alemão; os artigos 1564° e 1565º do Código Civil Português; e, por fim, o artigo 1038 do Código Civil Italiano. Para esse levantamento serviu-se, mais uma vez, da biblioteca do professor Giuseppi da Costa. 

 

Numa terceira e última etapa, voltou-se para análise jurisprudencial no âmbito dos pretórios pátrios, em que foram utilizadas como fontes de repositório jurisprudencial a Revista Síntese de Direito Civil e Processo Civil, a Revista dos Tribunais, o Cd room júris síntese millennium e a Internet.

 

São estes, pois, os instrumentos metodológicos que julgou-se adequado ao cumprimento da tarefa alhures referida.

 

 

 

 

 

CAPÍTULO I

 

1 – BREVÍSSIMA NOTÍCIA DOS LIMITES DAS SERVIDÕES NO DIREITO ROMANO

 

O instituto da servidão, no sentido jurídico em que é concebido modernamente, nasceu com o surgimento do direito das XII tábuas, quando ocorre a dessacralização da propriedade, com a inserção desta no âmbito do ius (do direito) e a conservação apenas do sepulchrum, na esfera da faz (da religião), o que não significa que inexistisse anteriormente vestígios da sevitutibus[1], pois onde quer que exista propriedade privada, existem limites ao seu exercício pleno. O que ocorre é que tais limites dimanavam mais em virtude da religião do que especificamente do direito de propriedade.

 

Nesse sentido é que Fustel de Coulange (1998), historiador de incontrastável autoridade, dizia que a lei romana determinava que a partir do momento em que alguma família vendesse o campo onde se localizava o seu túmulo, ela deveria, ainda assim, permanecer proprietária do mesmo, conservando sempre o poder de atravessar o terreno, a fim de cumprir o cerimonial do culto.

 

Nos períodos pré-clássico e clássico romano, as servidões encontraram ambiente propício para o seu desenvolvimento. Foi a época da ampliação das lex romanas, em que se buscou a expansão do instituto da servidão através dos diversos tipos que foram surgindo. Nesse tempo, seguindo a esteira dos ensinamentos de Moreira Alves (2002), a servitutes abrangia exclusivamente a servitutes praediorum.

 

Em vista da referida tipicidade, as servidões prediais se classificavam em duas grandes espécies; as rústicas e as urbanas.

 

As servidões dos prédios rústicos eram as de passagem (iter), de caminho (actus), de estrada (via) e de aqueduto (aquae ductus). Servidão de passagem (iter) era o direito do homem de ir e vir sem conduzir jumento ou veículo. A de caminho (actus) era o direito de conduzir jumento ou veículo. Assim, quem tinha passagem (iter) não tinha caminho (actus), mas quem tinha caminho (actus), tinha passagem (iter), e podia usar esta mesmo sem jumento. Estrada (via) era o direito de ir, vir e passar, compreendendo as servidões de passagem (iter) e de caminho (actus). A de aqueduto era o direito de conduzir água através de prédio alheio.

 

As servidões de prédios urbanos eram as inerentes aos edifícios, e, por isso, chamados prédios urbanos a todos os edifícios, ainda mesmo os construídos numa vila. Eram servidões de prédios urbanos as de vizinho suportar o peso do prédio vizinho, a de pregar tábuas no prédio contíguo, a de receber ou não receber as goteiras ou águas no edifício, no quintal ou no esgoto e a de não levantar mais alto, para não tirar a luz do vizinho.

 

 Entre as servidões dos prédios rústicos, com razão, incluíam-se a de tirar água, a de levar o gado para beber, a de fazer pastar, a de queimar cal e a de tirar terra.

 

Com o passar do tempo, conta-nos Ebert Chamou (1951), mais especificamente no período pós-clássico, o direito justinianeu põe fim ao princípio da tipicidade, se estendendo a expressão “servidão” a outros direitos reais sobre coisa alheia, dividindo-se, então, em duas categorias; as servitutes praediorum e a servitutes personarum.

 

Neste sentido, o jurisconsulto Marciano citado por Del Conral (1889) já dizia que “Las servidumbres ó son personales, como el uso y el usufructo, ó reales, como las servidumbres de los predios rústicos y urbanos” (D. L.8.1; fr. 1).

 

 Ainda no chamado período clássico, houve preocupação dos legisladores em limitar o modo de exercício da servidão. Como assinala o sempre citado José Carlos Moreira Alves (2002), no Digesto, em seu título VIII, encontrava-se regra ditando que constituída a servidão predial, o proprietário do prédio dominante poderia exercer todas as faculdades que integram o conteúdo desse direito, pois no ato constitutivo das diversas servidões se podia determinar, precisamente, o modo de seu exercício.

 

É o que, mutatis mutandis, proclamava Papiniano (PAPINIANO apud DEL CONRAL, 1889):

 

Las servidumbres no pueden ciertamente constituir-se en estricto derecho ni desde cierto tiempo, ni hasta cierto tiempo, ni bajo condición, ni hasta cierta condición, por ejemplo; hasta cuando yo quiera; pero, se embargo, si se añadieran estas cosas, se opondrá la excepción del pacto ó la del solo al que contra lo establecido vindicase la servidumbre y esto referio Cassio que respondió también Sabino, y que à él le parece bien.

 

 Parágrafo 1º – Es sabido que puede añadírseles modo à la servidumbre, por ejemplo, con que género de vehículo so transporte, ó no se transporte, ó bien que la conducción se haga solamente con caballo, ó de cierto peso, ó que se lleve de transito determinado rebaño, ó que se portee carbón (D. 8. 1; fr. 4). 

 

Faz ver, ainda, Moreira Alves (2002), em seqüência, que há uma outra forma de limitação encerrada no mesmo diploma, indicando que o titular da servidão deve utilizar-se  de seu direto de modo que cause o menor transtorno ao prédio serviente. Destarte, em sendo estabelecido o local onde deve ser exercido o direito de servidão (lócus serruitutis) no prédio serviente, somente aí deverá ser exercida a servidão; de outra forma, todo o prédio serviente está a ela subordinado.

 

Como comentava o jurisconsulto Celso citado por Del Conral (1889):

 

 Si à alguien se lê cediera ò dejase simplemente camino por el fundo de cualquiera, le será licito pasar y conducir por tiempo indefinido, à saber, por cualquier parte del mismo, con tal que sea con arreglo à derecho. Porque en la expresión se exceptúan tácitamente algunas cosas, pues no se ha de dejar pasar, ni conducir por la misma casa, ni por medio de las viñas, como quiera que pueda hacer esto con igual comodidad por otra parte con menor daño del fundo sirviente. Pero fue constante, que por donde primeramente hubiese dirigido el camino, por allí debiese pasar y conducir en lo sucesivo, sin que tuviera facultad para cambiarlo otra vez según así parecía también á Sabino, que se valía del argumento de la corriente de agua, la que en un principio había sido lícito conducirla por cualquier parte, y después que hubiese sido guiada no era lícito cambiarla; lo cual es verdad que también se ha de observar respecto à un camino (D. 8, 1; fr. 9).

 

É de ressaltar-se que, além das supracitadas limitações, os romanos obedeciam regra de limitação relativa aos elementos dominiais em geral, que incluía, por certo, as servidões (GERIGE, 2004). Tratava-se do exercício civiliter modo das servidões, ou seja, os antigos povos da península itálica  preocupavam-se em exercer a servidão de modo a não agravar a situação daqueles que as sofressem.

 

Vê-se, assim, abraçando doutrina de Roberto de Ruggiero (1999), que no fundo, os legisladores romanos partiram da idéia de que as servidões, implicando uma limitação aos poderes normais absolutos do domínio, deveriam conter-se dentro das necessidades de gozo de um prédio. Sendo, então, muito mais útil, sob o ponto de vista social, a liberdade  total das propriedades do que os vários e particulares serviços em que aqueles se pudessem transformar. Da mesma maneira que acontecia com o homem, assim, também, nos prédios deveria ser defendida a  liberdade, que prevalecia sempre sobre a da sujeição, de modo que, quando não havia uma necessidade essencial, o direito ilimitado à propriedade era o  que preponderava.

 

Na realidade, os limites ao exercício das servidões eram preteridos em eventos especialíssimos, e caso fossem desempenhados fora desses parâmetros estipulados, com a intenção de prejudicar, os romanos reprimiam esses abusos utilizando-se do princípio segundo o qual nemini laedit qui jure suo utitir (aquele que age dentro de seus direitos a ninguém prejudica), que, de acordo com o conspícuo Aguiar Dias (1983), em interpretação a contrario sensu, expressava a moderna teoria do exercício abusivo de direito.

 

Todavia, como informa-nos Carlos Roberto Gonçalves (2003), por se mostrar esse princípio injusto em certos casos em que era patente o animus laedendi, embora não ultrapassasse o agente os limites de seu direito subjetivo, passou a ser substituído por outros princípios: o nemini ladere e o sumummum jus, summa injuria, que posteriormente foram universalmente aceitos, pois é preceito basilar de toda a coletividade civilizada o dever de não prejudicar a outrem.

 

Assim, rematando estas afoitas linhas históricas, pode-se dizer, seguramente, que os limites e abusos no exercício da servidão nasceram, com tratamento jurídico específico, no período clássico romano, sendo exato que no Direito Romano já despontavam leis nesse sentido.

 

Primitivamente, como visto, a propriedade tinha cunho genuinamente religioso, o que, de certo, impossibilitou o surgimento da servidão como instituto jurídico.

 

No período clássico, com as sensíveis alterações na sociedade e na família romana, brotou a necessidade de edição de leis que regulamentassem o arquétipo do direito de servidão, qual seja, a propriedade.

 

Essa tendência de se legislar sobre a propriedade desembocou, por ricochete, na regulamentação da servidão, que passou a receber tratamento específico, possuindo princípios e uma faceta limitadora ao seu exercício.

 

Além disso, como se pôde notar, na ocorrência de excessos no exercício de quaisquer direitos, o que por certo incluía o da servidão, vislumbrava-se, na antiga cidade da Península Itálica, ainda que de maneira rudimentar, uma concepção da doutrina do abuso de direito.

 

Portanto, à guisa de noções propedêuticas, esta primeira parte do trabalho teve por escopo, fundamentalmente, o de situar a servidão no contexto em que foi concebida, o que pode e deve auxiliar na sua conceituação.

 

 

 

CAPÍTULO II

 

1 – CONCEITO

 

A propriedade, sob uma perspectiva privatista, deve ser entendida como um direito subjetivo do qual se vale um indivíduo para garantir o privilégio exclusivo da exploração de um bem e de impor esta faculdade contra os que eventualmente queiram a ele se opor.

 

Por outro lado, é certo que os proprietários, desde os mais remotos tempos, não podem utilizar-se desse direito irrestritamente, devendo abster-se da prática de determinados atos e consentir o exercício de tantos outros. Assim, os direitos dos proprietários padecem de restrições nas suas propriedades naturais ou nas faculdades de uso, fruição e disposição (PEREIRA, 2002).

 

Conseqüência disso é a existência de institutos que derivam do gênero restrição ao uso da propriedade, como é o caso da servidão, que se caracteriza como uma condicionante ao exercício ilimitado da propriedade, ou seja, que reduz o pleno uso desta.

 

Nesse sentido, os clássicos autores Baudry e Lacantinerie ([19-?], p. 34) afirmam que “la parola servitú ha desgnato anzitutto la restrizione portata alla libertà delle persone, poi quella recata alla libertà die fondi. Il fondo serviente non è leibero, perché il suo proprietario è tenuto a soffrire o a non fare una data cosa, nell’interesse de fondo dominant”.

 

Em magistério que afina, ponto por ponto, com esse entendimento, os brilhantes Aubry e Rau (1935, p. 629), entendem que “les servitudes (sensu lato), sont des droits réels em virtu desquels une personne est autorisée à tirer de la chose d’autrui une certaine utilité”.

 

De maneira semelhante, todavia, buscando dar maior importância à submissão do prédio serviente ao dominante, a autoridade de Alberto Trabucchi (1967, p. 508) revela que “el contenido del derecho de servidumbre se concreta siempre em uma venteja a favor de um fundo y em la restricción del goce de outro; ventaja y restricción constituyen, por tanto, dos aspectos correlativos de la servidumbre”.

 

Ao revés, na esteira da escola moderna, Windscheid, citado por José Serpa Santa Maria (1998), considera as servidões como direitos reais que sujeitam à coisa, não na totalidade de suas relações, mas apenas em uma ou alguma de suas relações singulares.

 

No mesmo sentido, Sohn apud Tobenãs (1951) define as servidões como direito limitado de gozo e desfrute da coisa alheia por um sujeito determinado.

 

No direito pátrio, Lafayette Pereira (1956), ao enfatizar  que a servidão é o direito real constituído em favor de um prédio (o dominante) sobre outro prédio pertencente a dono distinto (o serviente), abraçou a corrente clássica em seu aspecto passivo.

 

Já Pontes de Miranda (1957), civilista por excelência, ao detectar que as servidões são os direitos reais que conferem ao dono do prédio dominante o exercício de algum dos direitos provenientes do domínio, ou o retiram do proprietário do prédio serviente, pôs em evidência o caráter ativo desse direito acessório.

 

Ninguém, porém, conceituou o assunto com melhor visão que Spencer Vampré (SPENCER apud CARVALHO; 1991, p. 112), quando, por meio de uma fórmula conciliadora, escreveu que a servidão

 

 

é um direito real, voluntariamente imposto a um prédio (o serviente) em favor de outro (o dominante), em virtude do qual o proprietário do primeiro perde o exercício de algum dos seus direitos dominicais sobre o seu prédio, ou tolera que dele se utilize o proprietário do segundo, tornando este mais útil, ou pelo menos mais agradável.  

 

Muito embora incline-se pela límpida definição de Vampré, bem da verdade é que, acolha-se a orientação que se acolhe, ou não, a importância dessas acepções estão somente na possibilidade de separação de uma série de elementos que especializam o instituto.

 

Portanto, desse lapidar conceito, podem-se abstrair os elementos que constituem a servidão, a sua natureza jurídica, os seus caracteres norteadores e a sua finalidade. É o de que cuidar-se-á, por miúdo, nos tópicos seguintes. 

 

 

2 – ELEMENTOS CONSTITUTIVOS OU DE CARACTERIZAÇÃO

 

Como entidade jurídica instituída e regulamentada por um conjunto orgânico de normas, a servidão possui e necessita da presença de determinados elementos para que passe a ter existência jurídica. Em outras termos, os seus elementos de caracterização ou constituição são condições indispensáveis para a sua formação e conseqüente validade.

 

A  propósito de quais sejam esses elementos, a doutrina é, na sua maioria, firme em dizer que a servidão deve ser instituída sobre prédios distintos e vizinhos, que se trate de uma obrigação negativa e que seja estabelecida em proveito de um prédio, sendo, portanto

 

fato isolado os autores que não diferenciam os elementos constitutivos da servidão dos seus princípios ou regras gerais[2].

 

 Destarte, em simetria com a melhor doutrina, os elementos configuradores da servidão, como antes anotado, podem resumir-se nos seguintes:

 

 

2.1 Instituição sobre prédios distintos

 

Toda servidão supõe a existência de dois prédios, onde um (prédio serviente) é gravado em proveito de outro (prédio dominante), no intuito de aumentar a utilidade desse último. É impossível a instituição de qualquer servidão quando os prédios não pertençam a proprietários diversos. Com efeito, se uma mesma pessoa possui dois prédios, a ela é franqueado o direito de  utilizá-los da maneira que melhor lhes aproveite.

 

Essa, aliás, é a idéia que está embutida nas considerações expendidas por Colin e Capitan (1919, p. 834):

 

quand une même personne posside deux fonds, ele est libre d’en faire ce qu’elle veut, de se servir de l’un et de l’autre comme elle l’entend, et de créer entree eux tel aménagement qu’elle juge utile. Mais cette utilisation de l’un des fonds pour l’autre n’est pás une servitude. Nemini res sua servit, disaient les jurisconsultes romains.

 

Como faz notar Arnaldo Rizzardo (2002), se ambos os imóveis pertencessem ao mesmo dono, desapareceria o ônus, já que o proprietário usufrui na sua totalidade os direitos decorrentes do domínio.

 

Deste modo, os prédios dominante e serviente, contínuos ou não, mas vizinhos, devem pertencer a proprietários diferentes, sob pena de não ter objeto a servidão (FULGÊNCIO, 1984).

 

 

2.2 Prédios vizinhos

 

            O prédio serviente e o prédio dominante devem achar-se  próximos um do outro para que se  exerça a servidão, embora não seja necessária a contigüidade entre os prédios, pois, apesar de não serem vizinhos, um imóvel pode ter servidão sobre outro, desde que se utilize daquele de alguma maneira, ou seja, desde que a servidão, nos dizeres de Aubry e Rau ( 1935), ofereça ao proprietário do prédio dominante uma vantagem apreciável.

 

É de ressaltar-se, por outro lado, como na maior parte dos casos sucede, que as servidões se estabelecem exatamente entre prédios adjacentes e que para algumas não se concebe situação diversa da contigüidade imediata (RUGGIERO, 1999). Apesar disso, a contigüidade não é, em regra, necessária, devendo os prédios ser vizinhos, no sentido de guardarem tal proximidade que a servidão se exerça em efetiva utilidade do prédio dominante.

 

Haverá, pois, uma necessidade de vizinhança entre os prédios para que se caracterize a servidão.

 

2.3 Obrigação negativa

 

O conteúdo da servidão não pode consistir numa ação humana, isto é, não pode ser um fazer. Como se sabe, um dos critérios que serve de base à distinção entre direitos reais e de crédito consiste, na verdade, em que o fazer é o objeto próprio das obrigações e não dos direitos reais, que para a sua atuação não exige uma atividade de pessoas determinadas, mas implica apenas um dever negativo de todos. Segundo Ruggiero (1999), este dever, que nas servidões pertence principalmente ao proprietário do prédio serviente, exterioriza-se quando a servidão confere ao titular do prédio dominante o direito de exercer alguma faculdade sobre aquele, ou em um não fazer quando a servidão consiste no direito de impedir que determinados atos sejam praticados.

 

Com base em Coelho da Rocha, José Serpa Santa Maria (1998) recorda que legislação alguma arquiteta a servidão no sentido in agendo por parte do prédio serviente, ainda que admita certas anomalias de serviço ou utilidades a prestar. O encargo, entretanto, pressupõe um crédito, de sorte que o proveito granjeado pelo senhorio do prédio dominante é a contrapartida do encargo.

 

Tem-se, por conseguinte, que a servidão gera direitos e deveres, mas estes ou consistem numa abstenção, ou em tolerar o exercício de algumas faculdades do dono do prédio beneficiado sobre o prédio subordinado ou serviente (PEREIRA, 2002).

 

Desnaturar-se-ia, pois, a relação real, mudando-se em relação de obrigação, se dissesse respeito a um facere por parte do prédio serviente.

 

 

2.4 Direito estabelecido em proveito de um prédio

 

Se é certo que a servidão consiste em um dever negativo, mais certo ainda é que ela deve ser estabelecida em proveito do fundo dominante. A servidão é constituída não para a serventia de uma pessoa, mas de um prédio.

 

Com efeito, para a sua caracterização,  a pessoa que dela se  beneficia é indiferente. Isto porque, o direito à servidão continuará a existir mesmo quando os proprietários tenham mudado, tanto que o prédio dominante e serviente continuarão a subsistir independente de quem tenha a sua propriedade .

 

Neste sentido manifestam-se Colin e Capitan (1932, p. 686), ao asseverar que “La servitude ne peut être imposée ni à la personne, ni em faveur de la personne, mais seulement à un fond et pour un fond” .

 

Não será mesmo possível a constituição desse direito em proveito de um proprietário ou de seus sucessores. A servidão não tem por objeto vantagens pessoais, é estabelecida para utilidade do prédio, devendo visar ao valor econômico do fundo dominante e não às vontades individuais dos seus donos.

 

Aliás, este é um dos motivos porque se diz ter a servidão natureza jurídica de direito real sobre coisa alheia, ou seja, por se tratar de uma relação entre imóveis e não entre pessoas, já que, no concernente à servidão, o ser humano atua apenas por meio de certos atos destinados à conservação.

 

 

3 – NATUREZA JURÍDICA

 

Definir a natureza jurídica de um instituto é identificar o seu significado do ponto de vista do direito, determinando a sua identidade e estabelecendo a sua posição no mundo jurídico. Com relação à servidão, trata-se de um“calidoscópio de mil faces” tendo em vista a vacilação da doutrina quanto à fixação dos caracteres necessários à sua compleição.  

 

Em razão disso, elementos como a perpetuidade, indivisibilidade e inalienabilidade são alçados, pelos mais renomados escritores, ora à categoria de elementos essenciais para que se determine a posição da servidão no direito vigente, ora à qualidade de regras norteadoras do instituto, provocando um verdadeiro “imbróglio” jurídico em torno do assunto. 

 

José Serpa Santa Maria (1998), civilista por excelência, entende que, além de ser um direito real, a servidão apresenta a natureza de direito acessório, perpétuo e indivisível. Sendo, pois, de estranhar a repetição do requisito “indivisibilidade” quando discorre sobre os postulados fundamentais do instituto.

 

De maneira semelhante, Maria Helena Diniz (1997) faz alusão a um direito de gozo ou fruição sobre imóvel alheio, de caráter acessório, perpétuo e indivisível, acrescendo, ainda, a condição de inalienável.

 

Nesse diapasão, Pedro Simões Neto e Joventina Simões Oliveira (1998) vislumbram na servidão um direito real imobiliário, inalienável, indivisível e perpétuo.

 

Com a devida vênia, inobstante o autorizadíssimo parecer dos eminentes juristas, nota-se que, em alguns aspectos, essas classificações são imprecisas, uma vez que deve haver, por definição, uma diferença entre natureza jurídica e caracteres norteadores. 

 

Como já dito, discorrer sobre a natureza jurídica da servidão é articular a respeito da sua essência ou substância, posicionando-a na sistemática jurídica. Nesse sentido, não há dúvidas de que a servidão encontra-se situada na esfera dos direitos reais acessórios sobre coisa alheia. Direito real porque se trata de relação entre coisas apropriáveis pelos sujeitos de direito; acessório devido à sua impossibilidade de subsistir independentemente da existência do direito principal de propriedade; e sobre coisa alheia porquanto refere-se a uma relação entre prédios de proprietários distintos.

 

Sobrepuja-se e realça-se, deste modo, no mais alto grau, a natureza real e acessória desse iura in re aliena (VENOSA, 2002).

 

Destarte, os caracteres de perpetuidade, indivisibilidade e inalienabilidade são, na verdade, elementos que irradiam da natureza jurídica de direito real que possui o instituto, servindo, apenas, como noções principiológicas de orientação.

 

Assim, na rima dessa inteligência, Orlando Gomes (1978) pronuncia que a servidão é direito real imobiliário e acessório, tendo em vista onerar prédios independentemente das pessoas a que pertençam e não ter existência autônoma, decorrendo dessa sua condição, a inalienabilidade, a indivisibilidade e a perpetuidade.

 

Na mesma acepção, em hermenêutica a contrario sensu, o conspícuo Caio Mário da Silva Pereira (2003) pondera que a indivisibilidade, a perpetuidade e a inalienabilidade são “características da servidão”.

 

Ademais, como logo após será observado, esses caracteres norteadores são uma conseqüência da servidão, passando a existir, tão somente, a partir do momento em que esta restar constituída.

 

 

4    PRINCÍPIOS  FUNDAMENTAIS

 

Como anteriormente visto, o desapego da doutrina civilista para com alguns conceitos essenciais tem contribuído para o agravamento das imprecisões antes mencionadas. Em geral, não tem sido dada importância a uma rigorosa determinação semântica dos termos empregados, ou, o que é pior, têm-se usado definições erradas para enquadrar determinados fenômenos.

 

Devem, pois, os princípios ou postulados da servidão ser entendidos como forças orientadoras a que o legislador se sujeita para a solução das controvérsias submetidas a juízo. São regras incorporadas ao instituto, constituindo o substrato das diversas normas positivas que o regem.

 

Não são, portanto, características que enquadram o instituto da servidão em determinada posição no sistema jurídico, nem muito menos elementos que o constituem, mas sim, idéias básicas que o presidem, atuando apenas secundariamente como elemento definidor da sua essência ou substância.

 

Desse modo, procurando esquivar-se do conteúdo específico e da disciplina particular que regem as servidões verifica-se que todas elas são conduzidas por diversos postulados que podem ser resumidos, de maneira brevíssima, nos à seguir mencionados. 

 

 

4.1 Inseparabilidade

 

Intimamente relacionado à natureza acessória da servidão está o princípio da inseparabilidade. As servidões ligam-se por vínculo real a imóvel alheio. Destarte, não podem ser destacadas dos prédios, sob pena de se tornarem instituto distinto da servidão.

 

As servidões, como anteriormente visto, são direitos reais acessórios, que não subsistem sem os prédios. É sua característica, portanto, a inseparabilidade (VENOSA, 2002).

 

Assim sendo, como gravame imposto sobre um prédio, a servidão necessariamente deve estar condicionada à existência deste, posto que, extinta a propriedade a qual se une,  não mais há de se falar em servidão.

 

Em outras palavras, esse iura in re aliena une-se de modo duradouro e indeterminável aos prédios.

 

4.2 perpetuidade

 

Subsistindo em quanto não ocorrer uma causa legal de extinção, nada mais impede a perpetuidade das servidões. Como prescreve Jéferson Daibert (1973), é ela perpétua no sentido de que tem duração indefinida, ou seja, por prazo indeterminado, perdurando enquanto subsistirem os prédios aos quais se adere. Entretanto, segundo os sempre citados Aubry e Rau (1935), as servidões são perpétuas somente em sua natureza e não em sua essência. Coisa nenhuma impede que se limite a duração deste direito real.

 

Nesse diapasão, bem explica Roberto de Ruggiero (1999) que apesar da possibilidade de se extinguir esse iura in re aliena por meio de convenção, certo é que a duração da causa da servidão deve ser considerada como requisito para a sua existência, e embora seja conferida extensa liberdade aos proprietários de estabelecerem o que quiserem a cargo ou a favor dos seus prédios, repugna à própria natureza do instituto que uma propriedade (prédio serviente) seja onerada somente pela existência de um serviço passageiro e que atenda necessidades apenas transitórias do prédio dominante.

 

Em abono, informa-nos Tito Fulgêncio (1984) que podem as servidões se extinguir por convenção, e certos fatos necessariamente as extinguem. 

 

Portanto, postulado geral que deve ser observado é o da perpetuidade do instituto, posto que, enquanto não ocorrer uma causa legal que o extinga, ele deve  subsistir. 

 

4.3 Indivisibilidade

 

 Outra propriedade da servidão é a sua indivisibilidade[3]. Informou Pomponius, em célebre fragmento do Digesto, a fim de se referir à impossibilidade de divisão desse direito real, que “Et servitutess dividi non possijnt; nam earum usus ita conexus est, ut qui eum partiatur, naturam eius corrumpat” (GERIGE, 2004).

 

De fato, a servidão consiste no direito de fazer ou abster-se  de certos atos absolutamente indivisíveis. Já articulava Tito Fulgêncio (1984) que não se concebe a existência ou o exercício parcial de uma servidão: ou passa-se pelo caminho ou não se passa.

 

Consoante essa inteligência, dão-nos conta Aubry e Rau (1935)  que

 

les servitudes réelles sont indivisibles comme droits et comme charges, em ce sens qu’elles ne peuvent ni s’acquérir ni se perdre par quotes-parts idéales; et em ce que, d’une autre côté, elles sont dues à chaque partie de l´héritage dominant, et affectent également chaque partie de l’héritage servant.

 

Assim, tal como resulta dos termos do artigo 1.386 do Código Civil pátrio (BRASIL, 2002), as servidões são indivisíveis e subsistem, no caso de divisão dos imóveis, em benefício de cada uma das porções do prédio dominante, e continuam a gravar cada uma das porções do prédio serviente, salvo se, por natureza, ou destino, só se aplicarem a certa parte de um ou de outro, isto é, se não for instituída apenas em favor de uma parte do dominante, ou se não recair sobre local determinado (BEVILÁQUA, 1979).

 

 

4.4 Inalienabilidade

 

Advindo do condicionamento da servidão a uma constante necessidade do prédio dominante, é inaceitável a cessão da servidão para um outro prédio. Decorre daí, que o proveito retirado da servidão jamais pode ser alargado em benefício de outros prédios, ainda que seja um prédio próprio, caso contrário, como bem faz notar Venzi in Pacifici citado por Ruggiero (1999), desnaturar-se-ia o seu conteúdo, posto que, assim como o uso e a habitação têm em atenção a necessidade e as condições pessoais de quem usa ou habita, da mesma forma as várias servidões recebem um caráter especial, dado pelo prédio a que prestam um serviço. De tal maneira que, como salienta o brilhante Caio Mário da Silva Pereira (2002), o titular do direito de servidão não pode agregar outra pessoa ao seu exercício ou sobre ele constituir novo direito real.

 

Sendo assim, conforme assinala W. Barros Monteiro (1997), não se pode de uma servidão constituir outra, logo, o titular do domínio do imóvel dominante não tem o direito de ampliar a servidão a outros prédios.

 

4.5 Impresumibilidade

 

O último dos aspectos que cumpre analisar, para completar-se o quadro dos princípios que regem as servidões, é o da impresumilidade.

 

O direito de propriedade, sendo pleno e ilimitado, deve preponderar sobre qualquer forma de limitação que a ele se insurja. Destarte, é a propriedade junto com os direitos que dela derivam sempre presumível.

 

Por outro lado, como instituto que restringe o seu exercício pleno, a servidão deve ser sempre impresumível. Entendendo-se, assim, que no conflito de provas apresentadas pelo autor e réu, deve-se decidir contra a servidão, porque a interpretação necessita ser stricti juris.

 

Em acordo com esse juízo, o eminente Silvio Rodrigues (1997) escreve que presumível é a plenitude do domínio. O domínio presume-se pleno, de sorte que a pessoa que alega a servidão deve provar a maneira legal como obteve.

 

Nesse panorama, o Código Civil brasileiro de 1916 (BRASIL, 2002) estabelece, em seu artigo 696, que “a servidão não se presume”. Inferindo-se, pois, consoante doutrina de Bevilaqua (1979), que como direito real sobre imóvel alheio, a servidão constituída ou transmitida  por atos entre vivos, só se adquire depois da transferência no registro de imóveis.

 

Desta feita, conclui-se que a servidão possui como uma de suas características norteadoras a impresumibilidade, haja vista ser um direito que tem como uma de suas finalidades a limitação ao uso pleno da propriedade, como em seguida se constatará.

 

 

 

5 – FINALIDADE

 

Descritas a traços largos as idéias basilares que dão prumo ao instituto e delineados a sua natureza jurídica e os seus elementos estruturais, pode-se então esquadrinhar sobre sua finalidade. Pelo já versado, a servidão é um direito real limitativo, porquanto restringe o pleno exercício da propriedade. Nada obstante, ao lado desse desmembramento da propriedade, o qual encerra uma diminuição do seu valor econômico e do seu rendimento possível e normal, ela também confere um certo benefício ao fundo dominante, um aumento de seu valor econômico.

 

Nesse diapasão, o mestre italiano Roberto de Ruggiero (1999) observa que

 

o conceito de limitação não esgota, na verdade, todo o conteúdo jurídico e econômico da servidão, nem se deve tomar como seu aspecto principal, mas antes como a conseqüência necessária do poder conferido a alguém sobre a propriedade de outrem. A servidão – ainda quando tem por causa a lei e mais parece assemelhar-se aos limites legais da propriedade, principalmente naqueles casos que constituem os chamados direitos de vizinhança – distingue-se nitidamente deste e configura-se econômica e juridicamente como uma qualidade das propriedades, vantajosas para aquele que se beneficia do serviço e desfavorável para o que o presta, pelo que na limitação legal faz falta, a par do fenômeno da dependência e da sujeição de uma propriedade à outra, o de um direito real a favor do proprietário do prédio dominante. São pois o incremento e a restrição momentos correlativos, efeito esta daquele.

 

 De fato, a servidão é um elemento indispensável à organização jurídica da propriedade. Ela facilita a exploração do prédio dominante, permitindo o aumento de sua utilização e ensejando sua conseqüente valorização. Como bem lembra J.W. Hedemann (1955. p. 346), as servidões prediais são “uma pieza imprescindible em el aprovechamiento de la tierra”.

 

Além disso, as servidões também têm por fim corrigir as desigualdades naturais entre os prédios. Como esclarece Jefferson Daibert (1973), elas devem promover uma       presumível igualdade de direitos sobre imóveis, para que a sua utilização  social e econômica seja mais ou menos harmônica. Trata-se, pois, de um elemento de pacificação social.

 

Destarte, a servidão reduz sobremodo o uso ilimitado da propriedade, se propondo a facilitar a utilização e melhor aproveitamento de um prédio, o que implicará, sempre, em gravame a um outro. Em determinação mais rigorosa, trata-se do resultado da necessidade ou da conveniência do comércio social (ESPINOLA apud PEREIRA, 2002).

 

Tem-se firme, assim, que seja qual for a espécie de servidão, é da sua essência o aumento da utilização de um prédio, e a diminuição da de outro, o que acarreta a valorização econômica e enseja um aproveitamento eqüitativo.

 

 

6 – ESPÉCIES DE SERVIDÃO

 

A classificação dos vários tipos de servidões não se impõe tranqüilamente na doutrina, quer pátria, quer alienígena. Percorre um labiríntico caminho, variando ao sabor da metodologia abraçada ou mesmo em razão da corrente jurídica a que se acompanha[4].

 

Apesar disso, diversos autores admitem que essas diferenças na classificação não possuem qualquer importância, posto que nelas estão envolvidas as mais freqüentes e de maior importância prática.

 

Por outro lado, em vez de deixar a questão ao azar da compreensão ou convicção própria, é de bom talante adotar a escorreita classificação do professor Nelson Nery Junior (2002), a qual notabiliza-se pela sua clareza e simplicidade.

 

Destarte, em conformidade com doutrina do mencionado autor, pode-se classificar a servidão: segundo a forma como é exercida ou de acordo com a espécie de submissão que impõe ao dono do prédio serviente. Assim, quanto à forma, as servidões são urbanas ou rústicas; contínuas ou descontínuas e aparentes ou não aparentes. E quanto à espécie de submissão imposta ao titular do prédio serviente, elas são classificadas em afirmativas ou negativas (NERY, 2002).

 

 

 

 

6.1 Quanto à  forma

 

6.1.1 Urbanas ou rústicas

 

Proveniente do Direito Romano onde possuía grande importância, nos dias de hoje essa classificação é de pouco interesse prático. Não obstante, urbanas são as servidões exercidas no perímetro da cidade. Ou, como preferem Aubry e Rau (1935), quando se constituem em favor de um prédio edificado que encontra-se situado na cidade. Já rústicas são as servidões que campeiam a região rural, ou seja, as que se encontram localizadas fora do perímetro urbano.

 

 

6.1.2 Contínuas e descontínuas

 

Uma servidão contínua é, não aquela que tem seu exercício ou uso continuado, mas aquela que existe independente de um ato humano. Com bastante acuidade, anota Roberto de Ruggiero (1999) que o critério sobre o qual repousa essa distinção é, pois, a continuidade do exercício independentemente de um fato do homem, e não a continuidade ou descontinuidade da posse, que consiste em definição distinta.

 

Ao contrário, uma  servidão descontínua é aquela que para o seu exercício é necessário um fazer humano, que é forçosamente intermitente. Em outras palavras, seu exercício consiste num fazer sucessivo por parte do proprietário do prédio dominante sobre o serviente. É exemplo dessa espécie, a servidão de passagem.

 

 

6.1.3 Aparentes e não aparentes

 

As servidões aparentes são as que se exteriorizam por meio de atos visíveis, ou seja, são as que se anunciam por sinais exteriores (servidão de aqueduto). A servidão não aparente é a que, ao contrário, não se revela por atos visíveis (a servidão de não construir a certa altura).

 

Do mesmo modo, prescinde também esta distinção da aparência ou da falta de aparência da posse, não existindo relação alguma entre a aparência da servidão e a publicidade da sua posse; tudo se fundamentando sobre elemento material, a existência ou não-existência de sinais exteriores e visíveis, que segundo a natureza da servidão poderão encontrar-se no prédio dominante ou no serviente (RUGIERRO, 1999).

 

Esclarece José Serpa de Santa Maria (1998), com muita propriedade, que a classificação das servidões em aparentes e não aparentes pode combinar com a divisão das servidões em contínuas e descontínuas, resultando em outras espécies: a) servidão contínuas aparentes ( aqueduto); b) contínuas e não-aparentes (o de não construir a certa altura); c) descontínuas e aparentes (servidão de trânsito); e d) as descontínuas e não aparentes (a retirada de água, sem via própria visível).

 

Diga-se, desde já, que essa combinação de classes terá importância capital na  constituição e extinção das servidões.

 

6.2 Quanto à espécie

 

6.2.1 Positiva e negativa

 

Por fim, as servidões são, segundo sua espécie, afirmativas ou negativas. São positivas quando autorizam o proprietário do prédio dominante a praticar determinados atos sobre o prédio serviente. Ao revés, serão negativas quando impossibilitam o proprietário desse último prédio de exercer certos atos de propriedade. Em resumo, a servidão positiva seria o direito de praticar atos sobre outros prédios, e a negativa seria o benefício através de uma abstenção.

 

Sucede, assim, que a distinção dessas espécies assume, como antes dito, relevante interesse, notadamente sob o aspecto das peculiaridades de que se reveste cada espécie. Isso porque, como adiante se verá, regras dessemelhantes serão adotadas quanto à sua constituição.

 

 Deste modo fixado, segundo o mais abalizado entendimento, para  a classificação das servidões, parece oportuno tecer determinadas considerações sobre a sua constituição.

 

7 – CONSTITUIÇÃO DAS SERVIDÕES

 

Como instituto que restringe e limita o direito de propriedade em razão da sua finalidade econômica ou social, a constituição das servidões, à luz da dogmática moderna, deve ser sempre vista com reservas. Em razão disso, como já visto, o direito a este ônus real é impresumível, de sorte que, para possuir validade erga omnes deve ter a sua composição registrada.

 

Assim sendo, independentemente da espécie de servidão, deve-se procurar aplicar as regras comuns do Registro de Imóveis, já que a sua constituição é sempre uma alienação parcial do direito de propriedade (PEREIRA, 2002)[5].

 

Destarte, seguindo caminho tracejado pela doutrina e pelo atual Código Civil[6], a constituição da servidão pode ocorrer através de atos voluntários ou externos. Os primeiros compreendem a constituição por meio de contrato (ato bilateral), testamento (ato unilateral) e por destinação do proprietário. Os segundos abrangem a constituição por sentença homologatória e através da prescrição aquisitiva.

 

 

7.1 Constituição por atos voluntários

 

7.1.1 Contrato (ato bilateral)

 

Observadas a capacidade genérica para contratar e a capacidade de dispor sobre um determinado bem, qualquer pessoa pode, mediante contrato levado a registro, convencionar a respeito desse direito real limitado. Seja qual for a sua espécie, todas as servidões podem ser constituídas por contrato, que é, no estado atual do direito, o modo mais prático e usual de aquisição.

 

Colin e Capitan (1932), em lição por toda axiomática, entendem ser condições específicas para que haja a instituição da servidão por contrato: que o alienante seja proprietário da coisa transferida, pois o contrato firmado sobre  propriedade de outrem é irrealizável; e que a propriedade seja ao menos determinável, porquanto se for o bem indeterminável há uma impossibilidade natural de que o efeito translativo de domínio se produza.

 

Por outro lado, adverte Maria Helena Diniz (1997) que tal ato jurídico deve ser sempre oneroso, porquanto o proprietário do prédio serviente é indenizado pela restrição que é imposta ao seu domínio.

 

Em igual sentido, argumentam os precitados A. Colin e H. Capitan (1932) que “la constitution d’une servitude contre argent au profit d’un fonds voisin n’est pas autre chose qu’une vente de servitude. S’il y avait constitution de servitude à titre gratuit, ce serait une donation”.

 

Com a devida vênia, pelos termos desenganados com que os eminentes juristas concluem o seu raciocínio, qualquer contrato a título gratuito estaria fadado à inexistência, se tornado mera doação. Destarte, melhor se procede acolhendo entendimento que sufraga pela constituição gratuita ou onerosa desse ato bilateral[7].

 

7.1.2 Testamento (ato unilateral)

 

A constituição desse iura in re aliena também pode ser levada a efeito através de um ato unilateral, ou seja, por testamento. Tal ato constitutivo ocorre quando o testador deixa gravado ao beneficiário a constituição de uma servidão.

 

Segundo a doutrina, existem dois modos de se efetivar a constituição da servidão por testamento: o primeiro modo é quando a peça testamentária defere a um beneficiário a titularidade de um prédio e, em função disso, o direito de exercitar servidão sobre um outro; e o segundo modo ocorre quando se estabelece, no testamento, uma servidão em benefício do prédio vizinho.  

 

É de acrescentar-se que o beneficiário não recebe o imóvel gravado, pois em tal caso trata-se de servidão já existente que se mantém perpétua. 

 

7.1.3 Destinação do proprietário ou do pai de família

 

Essa forma de constituição ocorre quando um primitivo proprietário, que é dono de dois prédios gravados por uma serventia, aliena um deles, passando, então, a constituir verdadeira servidão o que antes era  uma mera serventia.

 

Como salienta Lafayette Pereira (1956), se o senhor de dois prédios estabelece sobre um deles serventias visíveis em favor de outro e posteriormente aliena um deles, ou um e outro passam por sucessão a pertencer a donos diversos, as serventias estabelecidas assumem a natureza de servidões, salvo cláusula expressa em contrário. 

 

A lei brasileira não tem um dispositivo que especificamente regule o assunto, o que, de certo, não impediu que a maioria da doutrina[8] conjecturasse e aceitasse a existência dessa espécie de instituição no direito pátrio. Todavia, uma minoria de juristas apegada ao esmero entende não criar a destinação do pai de família (como prefere chamar a doutrina francesa) uma verdadeira servidão, ao argumento de que esta só se constitui quando há a separação do domínio entre proprietários diferentes, após a sucessão ou a alienação.[9]

 

Por sua vez, segundo Maria Helena Diniz (1997), a jurisprudência pátria tem reivindicado como requisito para que se adquira a servidão por esse meio, que esta seja aparente, no intuito de proteger a boa fé do adquirente do imóvel dominante. 

 

 

7.2 Constituição por atos externos

 

7.2.1 Usucapião

 

O Código Civil vigente, que regula a hipótese de usucapião, dispõe em seu art. 1379, que “o exercício incontestado e contínuo de uma servidão aparente, por dez anos, nos termos do art. 1.242, autoriza o interessado a registrá-la em seu nome no Registro de Imóveis, valendo-lhe como título a sentença que julga consumado a usucapião”(BRASIL, 2002). Necessário, pois, para que a posse dê lugar à aquisição da servidão por usucapião, os mesmos elementos levados a cabo para a aquisição ad usucapionem da propriedade. 

 

Do mesmo modo, o mencionado artigo induz a admitir, também, que só as servidões aparentes e contínuas são passíveis de aquisição por usucapião. Isso porque apenas a posse  pública pode ser percebida e, conseqüentemente, ser capaz de ensejar  aquisição desse direito real pelo usucapião.

 

De tal maneira que, não se manifestando por sinal visível incessante, a servidão não-aparente repele a idéia de posse, condição fundamental de todo usucapião (FUGÊNCIO, 1984).

 

Aliás, segundo Arnoldo Wald (1995), a jurisprudência tem entendido, numa interpretação construtiva, que as servidões não-aparentes apenas podem existir quando registradas, sendo insuscetíveis de usucapião; e as servidões aparentes necessitam ser registradas mas, quando oriundas de usucapião ou de direito hereditário, o registro é exclusivamente probatório e não constitutivo do direito.

 

Noutra marcha, objeções foram lançadas no passado sobre a possibilidade de caber, no caso das servidões de trânsito,  a constituição por usucapião. Estas, por se limitarem ao direito de passar, seriam não aparentes e, como tais, suscetíveis de se constituírem tão-somente por título inscrito (PEREIRA, 2002).

 

Na verdade, o assunto ou pendência não resistiu a uma análise minudente, sendo hoje acolhida expressamente a regra de que a servidão de trânsito não titulada, mas tornada permanente, sobretudo pela natureza das obras realizadas, considera-se aparente, conferindo direito à proteção possessória (súmula 415 do STF).

 

 

7.2.2 Sentença Homologatória.

 

As servidões procedentes de atos externos podem ser estabelecidas não somente por usucapião, mas, também, pela sentença homologatória de divisão e demarcação de terra.

 

A sentença homologatória do processo de divisão de imóveis irá pôr fim à comunhão hereditária, criando, regra geral, uma divisão na antiga propriedade, que desaguará, após transcrição, no surgimento de novíssimos direitos reais.

 

Nada obstante, antes da referida homologação, deverá ser observada, na chamada “divisão geodésica do imóvel”, a possibilidade de se estabelecerem servidões prediais. Estas terão lugar quando imprescindíveis para o melhor aproveitamento do prédio que tenha, porventura, o seu uso limitado em virtude da composição dos quinhões. [10]

 

O artigo 979, II, do Código de Processo Civil (BRASIL, 2002), é o fulcro dessa inteligência, pois determina que serão instituídas as servidões que forem indispensáveis, em favor de uns quinhões sobre os outros, incluindo o respectivo valor no orçamento para que, não se tratando de servidões naturais, seja compensado o condômino aquinhoado com o prédio serviente.

 

A sentença homologatória, portanto, em face da lei invocada, poderá, nos casos em que for indispensável, instituir servidão.

 

Por fim, não é indispensável indicar, com apoio nos artigos 1.387, 1.388 e 1.389 do Código Civil pátrio (BRASIL, 2002), que as servidões podem se extinguir: a) quando o titular houver renunciado a sua servidão; b) quando tiver cessado, para o prédio dominante, a utilidade ou a comodidade, que determinaram a constituição da servidão; c) quando o dono do prédio serviente resgatar a servidão; d) pela reunião dos dois prédios no domínio da mesma pessoa; e) pela supressão das respectivas obras por efeito de contrato, ou de outro título expresso; e f) pelo não uso.[11]  

 

Portanto, constituída a servidão, seja pela forma que for, cumpre observar que o seu exercício nunca deverá ser praticado sem qualquer parâmetro. Com efeito, em sendo a servidão uma espécie de limitação ao uso pleno da propriedade, ela deve ser exercida, sempre, em harmonia com esta, sob pena de comprometer o seu uso e tornar injusto o direito de propriedade. Assim, logo adiante, serão esmiuçados os limites que balizam o exercício da servidão, que é a  pedra de toque da presente pesquisa monográfica.

 

 

 

 

 

CAPÍTULO III

 

1 – LIMITES NO EXERCÍCIO DAS SERVIDÕES

 

Conforme antes esclarecido, a propriedade, numa concepção clássica, deve ser entendida como um direito absoluto[12] de uso, gozo e disposição sobre um bem, em que há uma subordinação de uma coisa a uma pessoa.

 

É certo, de outra parte, que a sociedade reconhece, modernamente, ao lado desse direito pleno e individual, um direito social da propriedade sem o qual não se pode viver harmonicamente, devendo aquele (direito individual), por isso, ser exercido com cautela para que não venha tolher as mesmas faculdades que assistem a coletividade. Por este modo é que a linha limítrofe do direito de cada um é o direito dos outros e todos esses direitos são respeitados por força dos deveres que lhes correspondem (RÁO, 1999)  .

 

Planiol e Ripert (1952, p. 802),  juristas que o tempo valoriza, já ressalvaram, em meados do século passado, que

 

 

La société, a-t-on dit, reconnaît des drois à l’individu, mais la collectivité, sans laquelle il ne peut vivre. Elle lui reconnaît des droits parce qu’elle, de son côté, a besoin des individus, mais ils doivent les exercer conformément à leur but social, et comme des fonctions sociales. La loi précise dans une certaine mesure leur portée et leur fixe des limites. Les droits d’1ailleurs, ne sont pas sans limites.

 

Destarte, dentro desses limites impostos ao direito absoluto de propriedade está inserto o direito de servidão, que condiciona a utilização do prédio serviente a suportar determinados comportamentos (não fazer) praticados pelos usuários do prédio dominante, ou seja, que lhes facultam exercer sobre o fundo serviente certos atos de uso, em razão do atual fim social que resguarda a propriedade.

 

Jefferson Daibert, (1973) a respeito, preleciona que o exercício das servidões estabelece aos donos do prédio dominante e do prédio serviente direitos e obrigações que ao mesmo tempo restringem ou diminuem o uso e gozo do direito de propriedade do dono do prédio serviente e aumentam e facilitam o uso e gozo do dono do prédio dominante.

 

Diante disso, como instituto que limita um direito que é “absoluto”, a servidão deve ser contemplada restritivamente, decorrendo, daí, que os pilares[13] sustentadores deste direito real estão postos, de um lado, no sentido de reduzir o uso integral do prédio serviente sem que recaia sobre este um demasiado prejuízo, e, de outro, no desígnio de ampliar a utilização do prédio dominante sem causar excessivas perdas ao fundo serviente.

 

A esse respeito, aliás, é de clareza ímpar os ensinamentos de Arnaldo Rizzardo (2002) ao escrever que se deve procurar onerar com o menor encargo possível o prédio serviente. O imóvel, em tese, se presume livre, o que leva a exigir maior respeito da parte de outrem. O titular do benefício encontra percalço legal para o emprego da servidão em outras finalidades, dada esta presumida liberdade, que se afirma como princípio inspirador dos direitos do proprietário de usar, gozar e dispor de seus bens da maneira que melhor lhe prouver.

 

 Entretanto, pode ocorrer que o proprietário do prédio serviente tenha o seu direito lesado pelo do prédio dominante quando este exceder o seu direito de exercício de servidão, ou, em outras palavras, quando agravar o encargo sobre o serviente sem que tal lhe seja permitido. Dessa assertiva, pois, cabe indagar: até onde pode-se limitar o direito de propriedade em benefício de uma servidão? Ou melhor, quais os limites no exercício de uma servidão?

 

Vislumbrando a possibilidade do exercício da servidão ultrapassar as raias do normal, a doutrina, legislação e jurisprudência têm procurado traçar limites ao uso das servidões com o propósito de assegurar a função econômica e social da propriedade, ou mesmo no intento de evitar atos ilícitos ou abusivos.

 

Nesse sentido, há tempos os juristas das mais diversas quadras têm doutrinado sobre o assunto, sendo uma verdade irreplicável que já no direito romano eram concebidas algumas formas através das quais podia ser limitado o exercício das servidões.

 

À época, como se pôde constatar nos prolegômenos, a utilização da servidão de acordo com o menor transtorno (uso civiliter modo) e a previsão do conteúdo no seu ato constitutivo eram as formas previstas para contornar as dificuldades de um demasiado embaraço sofrido pelo titular do fundo serviente no seu direito de propriedade.

 

Com o passar dos séculos, surgiu a necessidade de se aperfeiçoar a abrangência desses limites, no escopo de absorver uma nova gama de situações exigidas pelo progresso da sociedade, pois, como bem escreve Tercio Sampaio Ferraz Jr. (2003), o sistema jurídico tem caráter dinâmico, captando as normas dentro de um processo de contínua transformação. Normas são promulgadas, subsistem no tempo, atuam, são substituídas por outras ou perdem sua atualidade em decorrência de alterações nas situações normadas. O sistema é apenas uma forma técnica de conceber os ordenamentos, que são um dado social. Em outros termos, o direito enquanto um sistema social, essencialmente decorre da natureza humana, é uma força social em sua origem, em sua essência e em sua finalidade.

 

Hoje em dia, analisando os limites ao exercício da servidão à luz da cumulação dos conhecimentos surgidos ao longo dos séculos, vê-se que eles são, com algum desenvolvimento de fundo, quase os mesmos existentes em períodos passados, razão pela qual se faz necessário analisar, primeiramente, a instituição do objeto (conteúdo) da servidão e o seu exercício de modo civiliter, para só depois se tecerem algumas considerações sobre os novos componentes que deles advieram.

 

 

1.1 O objeto e o exercício civiliter modo

 

Como se viu, no Direito romano, o proprietário do prédio dominante poderia exercer todas as faculdades que integrassem o conteúdo do direito de servidão, pois no seu ato constitutivo podia-se determinar, precisamente, o modo de seu exercício.

 

 Aí a semente de uma proteção que sempre se deveu à propriedade, e que  proliferou-se por todos os sistemas jurídicos advindos posteriormente, tanto que, atualmente, esse elemento limitador das servidões é encontrado positivado nas mais diversas legislações. 

 

 O conteúdo, ou como se prefere, o objeto da servidão, é tudo aquilo cujo exercício se permite. Nele está inserto, explicitamente, para que serve a servidão e, implicitamente, qual a maneira que se deve exercê-la, emergindo daí que as servidões não têm seu objeto ou conteúdo ilimitado, não se podendo, por meio deste, extrair um aproveitamento pleno e irrestrito do seu exercício.

 

Como bem explica o festejado jurista alemão J. W. Hedemann (1955, p. 345), “las servidumbres prediales tienen limitado su contenido; no hay un aprovechamiento pleno, sino orientado solo en una dirección determinada, por ejemplo, un derecho de paso. Es decir, la limitación se produce aquí en cuanto al contenido”.

 

É preciso deixar ressaltado, e aqui são aplicados os ensinamentos de José Serpa de Santa Maria (1998), que sendo a servidão constituída para beneficiar prédio alheio, o objeto de seu exercício se encerra dentro de sua delimitada natureza, definida pelo título de sua constituição. De tal modo que, através desse objeto, pode-se, por ilação, definir a maneira como deve a servidão ser exercida, como também, deduzir ser o conteúdo elemento limitador do exercício, posto que este só pode ir até os limites assentados naquele[14].

 

Válido, neste passo, que se tragam as observações de Pontes de Miranda ( 1957) sobre o assunto, pois segundo o eminente jurista, o objeto (conteúdo) enche o direito, ao passo que o exercício projeta-o. O exercício pode não ser correspondente a todo o objeto, todavia, não deve excedê-lo. No título ou na posse delimitam-se o objeto e o exercício da servidão; mas este há de conter-se naquele, posto que para além da projeção normal do objeto da servidão, o exercício é ilícito ou abusivo.

 

Bem verdade que tudo pode parecer um jogo de palavras, mas não há dúvida ser fundamental notar que o objeto da servidão está regulado pelo título ou pela posse, que, por conseqüência, também lhe regula o exercício. Como bem escreve o antes mencionado Miranda (1957), os limites do objeto podem não ser os do exercício mas os do exercício deverão de estar dentro daqueles.

 

A conclusão, portanto, é a seguinte: devendo a servidão ser exercida nas cercanias do seu objeto, que é estabelecido pela posse ou ato constitutivo, infere-se, exceptis excipiendis[15], que o objeto limita o seu exercício.

 

É ainda importante lembrar, com apoio na doutrina romanista, que sendo esse  direito real sobre coisa alheia exercido em compasso com o seu objeto, o dono do prédio dominante estará agindo conforme lhe é de direito, ou seja, dentro dos fins previstos e necessários. Assim, quando se atua dessa forma, diz-se que a servidão foi exercida de modo civiliter, ou seja, causando o menor prejuízo possível.

 

 Nesse sentido é que J. W. Hedemann (1955, p. 350), a quem a questão interessou, aponta que “en cuanto a fijar el alcance de sus facultades, habrá que estar al deber de observar uma conducta ordenada establecido por el princípio civiliter uti”.

 

Não é outro o ensinamento de Alberto Trabucchi (1967), ao asseverar que em todo caso aplicar-se-á o critério de que a servidão será exercitada civiliter, isto é, da melhor maneira que se possa satisfazer ao fundo dominante, causando, ao mesmo tempo, o menor prejuízo ao  serviente. [16]

 

Durante a vigência do Código Civil de 1916 (BRASIL, 2002), o exercício civiliter uti sujeitava-se à regra do art. 704 daquele diploma, situado sob o capítulo “da constituição das servidões”, cujo teor era o seguinte: “Art. 704. Restringir-se-á o uso da servidão às necessidades do prédio dominante evitando, quanto possível, agravar o encargo ao prédio serviente” (acrescentado) .

 

Pelo Novo Código (BRASIL, 2002), a referida questão passou a ser tratada sob a rubrica “do exercício das servidões”, no art.1.385, in verbis: “Art. 1.385. Restringir-se-á o exercício da servidão às necessidades do prédio dominante, evitando-se, quanto possível, agravar o encargo ao prédio serviente” (grifo nosso).

 

Como se vê, o artigo 1.385 do Código Civil de 2002 possui o mesmo conteúdo do seu arquétipo de 1916, havendo, apenas, uma alteração metodológica quanto ao seu enquadramento no sistema, já que foi criado um capítulo específico sobre o exercício da servidão. No que se  refere ao termo “uso”, adotado pelo Código de 1916, o legislador de 2002, por amor à melhor técnica, achou por bem substituí-lo pelo vocábulo “exercício”. No mais, tanto o Código revogado quanto o vigente buscaram nos aludidos dispositivos fazer menção ao exercício civiliter quando encartaram nos núcleos respectivos a intenção de se evitar, quanto possível, o agravamento  do encargo ao prédio serviente. 

 

Clóvis (1979), em seus Comentários ao Código Civil, diz, a propósito do artigo 704, o seguinte: a servidão deve ser exercida civiliter, como prescreviam as fontes romanas. Restando claro que sendo ela uma restrição ao direito de propriedade do dono do prédio serviente, não poderia ficar ao arbítrio do titular ampliá-la, segundo melhor lhe parecesse.

 

Denota-se, pois, que não basta que a servidão seja exercida de acordo com o objeto para que foi instituída, é necessário, ainda, que o dono do prédio dominante atue procurando, sempre, causar o menor transtorno possível ao prédio serviente. Destarte, ao não exercer a servidão suo iure civiliter uti, estará o proprietário do fundo dominante ultrapassando o limite do “exercício menos oneroso”, e atingindo, conseqüentemente, a esfera do ilícito.

 

À vista do exposto, pode-se, então, estabelecer que o exercício da servidão de modo civiliter, bem como, o seu objeto são, desde tempos antigos até os dias atuais, elementos que limitam o exercício das servidões.

 

 

1.2 A finalidade e a necessidade

 

Uma vez estabelecidos os iniciais elementos demarcadores do exercício das servidões, é adequado discorrer, nesse momento, a respeito do surgimento de outros que deles derivaram e que são de fundamental importância para se especificarem todos os componentes restritivos ao uso da servidão.

 

A doutrina, após análise da forma e do exercício civiliter, encontrou neles presente, intrínseca e extrinsecamente, a existência dos elementos “necessidade” e “finalidade” que independentes daqueles poderiam ser utilizados no momento da verificação dos  limites da servidão. 

 

Compreendeu-se, assim, que o seu exercício deveria ficar adstrito às necessidades para que foi instituída, como também à finalidade a que se propôs.

 

Apesar disso, em razão da tênue linha que os diferençava e colocava-os em posição similar, a tarefa de distingui-los foi bastante árdua, dando ensejo a nebulosas e por vezes ineficazes conceituações, o que, por certo, fez com que a doutrina moderna se ressentisse desse racha, não sendo poucos os autores que, ainda hoje, se embaraçam no trato do assunto.

 

Nesse sentido é que, procurando afastar-se desse movediço campo conceitual, traz-se à baila, em preliminar escusatória, exemplo prático que se pretende esclarecedor do tema em apreço.

 

Pois bem, imagine-se que o dono de um prédio “A” (prédio dominante) para chegar a um povoado “C”, sem percorrer longuíssima distância, deve passar pelo prédio “B” (prédio serviente), supondo-se que, para tanto, foi instituída uma servidão de passagem.

 

 Pergunta-se, então: Para qual necessidade e para que finalidade foi constituída essa hipotética servidão ?

 

Em resposta a essas indagações, ter-se-ia como necessidade da mencionada servidão de passagem o encurtamento da distância percorrida pelo dono do prédio “A” (dominante) para se chegar ao povoado “C”, e como finalidade  o deslocamento para o povoado no menor tempo.

 

Assim, para se atingir a finalidade pretendida, qual seja, chegar ao povoado “C” sem percorrer longuíssima distância, é necessário que o dono do prédio “A”(dominante) atravesse a menor extensão existente, que é, no caso, a traspassada pela propriedade do dono do prédio “B”(serviente) por meio de uma servidão de passagem.

 

Trazida a lume essa distinção, percebe-se, ainda que de forma precária, que os elementos finalidade e necessidade, de uma maneira ou de outra, servem de parâmetros para que se exerça uma servidão. Sucede, entretanto, que só uma análise penetrante de cada um deles pode indicar em quais perspectivas e extensão  isso acontece.

 

 

1.2.1 O elemento da finalidade e a sua função limitadora

 

Percutindo sobre a finalidade, enxerga-se que a sua importância está em saber para que foi constituída a servidão, e qual o benefício obtido pelo prédio dominante. Quando, por exemplo, o dono do prédio dominante tem o direito, de acordo com o título constitutivo, a servidão de água para regar cultura, salta à vista que essa servidão foi instituída com a única finalidade de regar cultura. E caso ocorresse que além de regar cultura o dono do prédio dominante estivesse se utilizando d’água para regar plantas ornamentais, o fim para a qual foi constituída estaria sendo extravasado.

 

  Ora, não é possível que uma servidão estabelecida para um determinado fim se exerça além desse, ou seja, para um outro fim que não o previsto. Como copiosamente explicitado, a servidão é instituto limitador do direito “absoluto” de propriedade, devendo seu uso ocorrer de maneira restritiva sem que onere excessivamente o prédio serviente.

 

Com efeito, Arnoldo Wald  (1995) entende que não pode existir mudança na intensidade nem na finalidade no exercício das servidões. A servidão constituída para um fim não pode ser utilizada para outro.

 

 Tal matéria, tratada no Código Civil de 1916 (BRASIL, 2002), no parágrafo único do artigo 704, vem agora disciplinada no parágrafo 1º do art. 1385, do novo Código Civil, com a seguinte redação: “Art. 1385 (…) § 1° constituída para certo fim, a servidão não se pode ampliar a outro”.

 

Nessa previsão, outro não pode ser o entendimento senão o que proferiu Pontes de Miranda (1956), no sentido de afirmar ser fim o elemento limitador do exercício da servidão, porquanto se diz, dentro do que é útil, o que, concretamente, interessa ao prédio dominante.

 

 Dessa forma, o exercício das servidões deve alcançar a finalidade para a qual foi estabelecida e nada mais além. 

 

 

1.2.2 O princípio do limite ao necessário

 

No que tange ao elemento necessidade, urge destacar que devem as servidões ser exercidas até os limites da sua razão de ser, ou seja, de acordo com as necessidades sem as quais a servidão seria impossível.

 

No caso, por exemplo, da servidão de água antes figurada, viu-se que ela foi instituída com a finalidade de regar cultura. Suponha-se que para atingir esse desiderato, fossem necessários  3.000 litros d’água. Ora, esses 3.000 litros d’água são o que necessita o dono do prédio dominante para atingir o fim desejado (necessidade), e sem os quais seria impossível alcançá-la de forma eficaz.

 

Como se vê, se não fosse facultado ao dono do prédio dominante atuar em conformidade com o necessário, a servidão afigurar-se-ia incompleta ou mesmo inexistente, pois  a necessidade consiste na sua razão de ser.

 

 Por outro lado, não sendo limitado o exercício da servidão ao necessário, ela estaria a onerar demasiadamente o prédio serviente, indo de encontro ao direito “absoluto” de propriedade. 

 

Dessa forma, percebe-se, sem maiores dificuldades, que  o pressuposto da utilidade ou da necessidade se apresenta fundamental, pelo que não se aconselha sua dispensa (MIRANDA, 1956).

 

Esse, aliás, é o fulcro da inteligência do art. 1.385, caput, do Código Civil atual (BRASIL, 2002), que possui a seguinte redação: “Art. 1.385. Restringir-se-á o exercício da servidão às necessidades do prédio dominante, evitando-se, quando possível, agravar o encargo ao prédio serviente” (acrescido).

 

Na verdade, é manifesto o propósito desse dispositivo, pois, como esclarece Clóvis Beviláqua (1979) em escólio ao idêntico artigo 704 do velho estatuto[17], sendo a servidão uma restrição ao direito de propriedade, o dono do prédio serviente terá de exercê-la, segundo o seu título, dando-lhe, restritivamente, a extensão exigida pelas necessidades do prédio dominante.

 

Assenta-se, pois, que a necessidade também limita o exercício da servidão, porquanto não é crível nem tão pouco provável que se diminua o valor do prédio serviente, sem que disso obtenha qualquer vantagem o fundo dominante. A necessidade deve ser sopesada quanto ao conteúdo da servidão e quanto ao seu exercício.

 

Portanto, na rima das lições de Laurent, citado por Carvalho Santos (1991), a servidão poderá ser usada para todas as necessidades que tiverem sido previstas no ato constitutivo e aquelas outras resultantes de uma aplicação virtual, oriundas de fatos ou circunstâncias que as partes deveriam prever no seu ato constitutivo.

 

Digna de nota, nesse momento singular, é a observação feita por Pacifici e Mazzoni, citados por Carvalho Santos (1991), relativamente ao estabelecimento das servidões em termos gerais, pois, segundo os mencionados juristas, se a servidão é constituída de maneira genérica, poderá ser exercida para todas as necessidades do prédio dominante. Donde se conclui que, em casos tais, a servidão poderá ser usada seja para as necessidades mais extensas do gênero para as quais foi estabelecida, seja para as necessidades diversas a que a servidão possa, por sua natureza, satisfazer.

 

Pois bem, analisada a questão da necessidade como limite ao exercício da servidão, há de se ter em conta como fixar a extensão daquelas necessidades do prédio dominante.

 

Na rima da lição de Aubry e Rau (1935), carece ser  examinada, para ser fixada a extensão das necessidades, a época em que a servidão foi constituída, pois  o benefício de uma servidão não deverá ser aplicado por via de extensão a prédios que o proprietário do dominante haja a este ulteriormente reunido.[18] [19]

 

Pacifici e Mazzoni, citados por Santos (1991) com o mesmo fito, porém sob outra perspectiva, argumentam que as partes contratantes ou o disponente só podem contratar a respeito das necessidades do prédio existente no tempo da constituição da servidão, não se conhecendo que sua vontade alcance coisas ignoradas.

[20]

 

Nesse sentido é que Pontes de Miranda (1957, pág. 370), com o brilho de sempre, proferiu lição cujo teor é o seguinte: “a extensão da servidão precisa ser determinada, para que sobre ela não haja dúvida. Se se lhe atribuir conteúdo maior do que aquele que se deduzira do direito de propriedade, agrava-se a servidão”.

 

Todavia, por esmero, é bom expor, na esteira do sempre referido Pontes (1957), que a extensão e o modo de exercício podem mudar com as circunstâncias, sempre que respeitados os princípios norteadores das servidões, e que na dúvida sobre a extensão ou a forma do uso, tem-se de procurar conhecer quais as necessidades do prédio dominante e qual o ponto em que se começa a prejudicar o prédio serviente.

 

Desse modo, exceções à parte, vê-se que o tempo em que ficou instituída a servidão é elemento categórico para determinar a extensão das suas necessidades.

 

 

1.2.3 Necessidade x  adminicula servitutis

 

É importante ressalvar  que há uma  distinção entre  a necessidade da servidão e os atos necessários ao seu exercício (adminiculas servitutis). Aquela diz respeito ao motivo de se constituir a servidão, já esta refere-se aos atos indispensáveis ao seu uso.

 

Quando, por exemplo, é necessário para o exercício de uma servidão d’água que o dono do prédio dominante tenha que passar por caminho dentro da propriedade serviente a fim de que possa retirar a necessária água para regar suas culturas, diz-se que esse ato de utilizar uma acessória servidão de caminho para conseguir retirar a água é uma adminiculas servitutis.

 

Veja-se que não se trata de um limite ao exercício da servidão, mas apenas de um  meio acessório e necessário que possui o dono do prédio dominante para atingir o fim pretendido, pois se lhe fosse  negado praticar tal ato seria impossível, ou ao menos dificultoso, atingir a finalidade almejada.

 

Robustecendo tal convicção jurídica, o artigo 1.380, do Código Civil vigente (BRASIL, 2002) preceitua que: “Art. 1.380. O dono de uma servidão pode fazer todas as obras necessárias à sua conservação e uso, e, se a servidão pertencer a mais de um prédio, serão as despesas rateadas entre os respectivos donos[21].

 

Em brilhante passagem de seus comentários ao Código Civil de 1916, Clóvis Bevilaqua (1979) é categórico ao dizer que o dono da servidão tem o direito a tudo quanto é necessário ao exercício dela. São as adminicula servitutis.

 

Raciocinando de igual forma, Washington de Barros Monteiro (1997) entende que para o dono do fundo dominante atingir os fins pretendidos com o estabelecimento da servidão, se torna preciso que lhe concedam também os meios necessários. Mais uma vez presentes as adminicula servitutis. [22]

 

Articulando as últimas palavras sobre o assunto, pode-se concluir, com apoio em José Lopes Oliveira (1980), que o direito real de servidão deve ser exercido em consonância com a finalidade para a qual foi estabelecida. Isso significa dizer que o direito de servidão compreende tudo quanto se afigura necessário ao seu exercício. Assim, o dono de uma servidão tem o direito de fazer todas as obras necessárias à sua conservação e uso. Mas, para atingir o fim desejado pela servidão, devem ser fornecidos ao dono do prédio dominante os meios adequados. De novo as adminicula servitutis.

 

Enfim, nada mais são do que os atos necessários para se alcançar o correto uso das servidões. E pensar de outra forma seria pensar errado.

 

 

1.3 Os costumes são elementos que limitam o exercício da servidão?

 

Algumas mentes mais antigas puseram os costumes no rol dos elementos limitadores do exercício das servidões, o que, de certo, representou um descuido. Afirmaram autores de alto quilate que além do objeto, do uso civiliter modo, da finalidade e da necessidade, os costumes seriam elementos restritivos, pois em se tratando de atos que devem ser praticados conforme a moral, a razão e a ordem pública (bons costumes), necessitam ser observados no momento do exercício das servitudines.

 

Nesse caso estão os costumes entendidos não como fontes do direito em sentido objetivo, em que o uso e as práticas repetitivas de certa conduta são elementos constitutivos, mas sim na sua concepção subjetiva de convicção ou consciência que tem a comunidade de se adequar à conduta praticada (MACHADO, 2004).

 

Para melhor compreensão, tome-se um excêntrico exemplo de uma servidão de passagem onde os pedestres sempre andem vestidos e que em determinado momento alguém resolva percorrê-la sem roupa. Como parece, os bons costumes locais não foram observados, razão pela qual o exercício da servidão excedeu os limites do razoável.

 

Na defesa dessa tese, deve-se trazer a lume as palavras arrojadas de Aubry e Rau (AUBRY e RAU, 1935, p. 128), seus artífices, segundo os quais: “le proprietaire de l’héritage dominant, peut exercer son droit dans toute l’étendue que comportent, d’aprés l’usage local, les servitudes du genre de celle qui se trouve établie au profit de cet héritage”.

 

No direito pátrio, o ilustre Lafayette Pereira (1956), abraçando a doutrina dos mencionados juristas franceses, escreve que o senhor do prédio dominante pode usar da servidão em consonância com a latitude que permite a natureza dela, com o título de sua constituição e com os costumes do lugar.

 

A conclusão a que chegaram os distintos mestres é irreplicável, se apreciada a questão isoladamente, pois é certo não se tratar de nenhum despropósito alçar à categoria de elementos limitadores do exercício das servidões os costumes, já que, da forma como foi posto, ou seja, no intuito de afastar tudo aquilo que traz “caráter animalesco”[23], o costume pode ser perfeitamente  um elemento limitador do uso das servidões.

 

Todavia, após uma análise mais acurada, vê-se que esse componente encontra-se  implícito no uso suo iure civiliter uti das servidões, pois, em não sendo observados os bons costumes do local, estar-se-á exercendo a servidão de forma irregular e em desrespeito aos direitos do proprietário do prédio serviente, isto é, contrário ao exercício de modo civilizado.

 

Além do mais, é atitude retrógrada frente ao direito contemporâneo querer tipificar excessivamente as regras de conduta social, visto que, atualmente, deve-se privilegiar as cláusulas gerais que buscam a formulação da hipótese legal mediante o emprego de conceitos cujos termos têm significado intencionalmente vagos e abertos.

 

O legislador não pode nem deve ser casuísta. Se o fosse, a lei haveria de se tornar por demais minuciosa, descendo a particularidades de toda ordem, para poder envolver as numerosas hipóteses que surgem na prática. Um código se transformaria, por certo, em assombroso conjunto de disposições regulamentares. Isso não se harmonizaria com o pensamento que a respeito tem preponderado através dos séculos (PICANÇO; 1996).

 

Assim sendo, não procede, nos dias de hoje, a opinião difundida de que os costumes sejam elementos que limitam o exercício das servidões, o que pode ser perfeitamente confirmado através de uma sucinta análise nos principais ordenamentos jurídicos alienígenas de origem romano-germânica, bem como, passando vistas nas decisões dos tribunais pátrios.

 



[1] O mesmo que servidão.

[2] O notável Roberto de Ruggiero (1999) qualifica o não fazer, a inalienabilidade, a titularidade diversa, a indivisibilidade, a perpetuidade da causa e a vizinhança, como “regras gerais” que norteiam o instituto da servidão.

 

 

[3]Servidão de passagem – Ação visando divisão de servidão de passagem – Imóvel encravado na parte dos fundos utilizado par a estacionamento de veículos – Indivisibilidade das servidões prediais – Art. 707 do Código civil – Inadequação da via eleita – Indeferimento – Sentença mantida” (1º TACSP. AC. Nº 452219-3/00. 5ª Câmara Especial. Relator: Juiz Marcondes Machado.  9/1/91).

[4] Orlando Gomes (GOMES, 1997), em sua obra “Direitos Reais”, assinala que as servidões podem ser classificadas pela sua causa, objeto e modo de exercício. Ressaltando, em seguida, que a classificação das servidões pela causa ou origem é admitida em algumas legislações e repelida em outras, e, ainda, que a classificação das servidões pelo objeto carece de importância prática. 

[5] Conforme se observa no artigo 108. CC: “não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que vise à constituição, transferência, modificação ou renuncia de diretos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País (BRASIL, 2002)”.

[6] Art. 1.378. “A servidão proporciona utilidade para o prédio dominante, e agrava o prédio serviente, que pertence a diverso dono, e constitui-se mediante declaração expressa dos proprietários, ou por testamento, e subseqüente registro no Cartório de Registro de Imóveis”.

[7] Nesse sentido é a robusta lição de Venosa (2002), que percebe a possibilidade de constituir-se servidão por contrato, a título gratuito ou oneroso.

 

[8] Defendem essa tese: Lafayette Pereira; Mazeaud e Mazeaud; Enneccerus, Kipp e Wolff; Washington de Barros; Philadelpho Azevedo e Roberto Ruggiero, dentre outros.

[9] Nesse sentido são as lições de Orlando Gomes e Clóvis Beviláqua.

[10] A respeito do assunto, ver os comentários de Hamilton de Morais e Barros ao artigo 979, II, do Código de Processo Civil.

[11] No que interessa neste trabalho, é fácil constatar ser supérfluo o detalhamento dos modos de extinção das servidões. 

[12] É o que Darcy Bessone denomina de princípio da causa da liberdade, pelo qual a propriedade presume-se plena e livre, até que o contrário se prove.

[13] É o caso, por exemplo, da necessidade, do registro em cartório imobiliário, do seu caráter impresumível e da sua finalidade econômica. 

[14]  Escrevem Aubry e Rau (1935) que o título e a aquisição podem ter os limites da servidão neles contidos, do que depreende-se que a forma de exercício já é um limite a servidão. 

 

[15] Excetuando o que deve ser excetuado.

[16] en todo caso, se aplicará el critério de que la servidumbre se ejercitará civiliter, isto es, de la mejor manera que se pueda satisfacer al fundo dominante causando al mismo tiempo el menor perjuicio al fundo sirviente” (TRABUCCHI; 1967, p. 517).

 

[17] “Art. 704. Restringir-se-á o uso da servidão às necessidades do prédio dominante,  evitando, quanto possível, agravar o encargo ao prédio serviente”.

[18] “l’exercice de la servitude ne peut exceder les besoins de l’héritage dominant, eu égard à son étendue à l’epoque où elle a été constituée. Le bénefice d’une servitude ne saurait donc être appliqué par voi d’extension à des fonds que lê propriétaire de l’heritage dominant y aurait ultérieurement reunis”. (AUBRY e RAU, 1935, p. 128).

[19] Todavia, quanto a esse entendimento, admite o brilhantissimo Demolombe, citado por Carvalho Santos, que não constituir extensão abusiva a simples comunicação a outros prédios do benefício da servidão quando seja apenas conseqüência ou o resultado do exercício legítimo pelo prédio dominante (DEMOLOMBE apud SANTOS, 1991).

[20] Carvalho Santos entende que, em casos tais convém lembrar que o benefício da servidão não se estende, de forma alguma, aos fatos que importem em modificação, quer no fundo serviente, quer no dominante (SANTOS, 1991).

[21] O art. 699 é o arquétipo dessa inteligência.

[22] Não é outro o entendimento de Aubry e Rau: “Toute servitude emporte ave elle la faculte d’exercer les servitudes accessoires qui sont indispensables à l’usage de la servitude principale” (AUBRY e RAU, 1935, p. 128).

 

[23] Expressão utilizada por Ihering (1979).na sua clássica obra “a finalidade do direito” .

Como citar e referenciar este artigo:
COSTA, Daniel F. O.. Dos limites ao exercício das servidões – uma visão privatista – Parte 1. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/dos-limites-ao-exercicio-das-servidoes-uma-visao-privatista-parte-1/ Acesso em: 24 abr. 2024