Direito Civil

Alienação Fiduciária em Garantia de Bens Imóveis

 

 

1 – Histórico

 

Desde os tempos mais longínquos, a questão de garantia de uma obrigação sempre se mostrou ser um problema. Entre os romanos o devedor dava a sua vida em garantia. Vale dizer que romanos credores de uma obrigação eram legalmente autorizados a matar o devedor e apropriar-se de seu cadáver.

 

Posteriormente com o crescimento da crença cristã iniciou-se a inovação. A dívida não-adimplita deixou de ter a própria vida como garantia, passando a ser o patrimônio material do devedor. Desta forma o credor podia avançar sobre os bens de propriedade do devedor.

 

No entanto tal prática não era muito segura, pois desde aqueles tempos o homem desde logo muitas vezes não cumpria com suas obrigações creditícias, utilizando-se dos mais variados estratagemas para atingir seus objetivos.

 

Destarte criou-se como forma de garantia para as operações de crédito, a garantia pessoal também chamada de fidejussória e a garantia real.

 

Na garantia pessoal pessoa terceira se compromete ao pagamento na hipótese de o devedor não pagar a obrigação.

 

A garantia real o próprio devedor dava como garantia bens de seu patrimônio, o que na realidade a entrega desse bem ao credor, retornando ao seu patrimônio somente na hipótese de dívida quitada.

 

Nasce no direito romano duas formas de garantir o crédito fidúcia cum amico e a fidúcia cum creditore, sendo que o pacto de fidúcia seria a forma de restituição do bem fungível dado em garantia.

 

Valendo-se do instituto de garantia real romano, o ordenamento jurídico germânico proporcionou a este instituto uma grande evolução, ao proporcionar ao alienante uma ação de natureza real que possibilitava que o fiduciário alemão fosse despojado do bem se não agisse conforme o pactuado. Destarte o alienante poderia obrigar o fiduciário a entregar a coisa alienada em garantia assim que quitada fosse a dívida assegurada. Também é do direito germânico o instituto do direito de seqüela. Referido instituto permite a reivindicação da coisa alienada, mesmo que de posse de terceira pessoa, de sorte que mesmo que o fiduciário viesse a desfazer-se da coisa, ao alienante seria permitido exercer seu direito sobre ela.

 

 

2 – INTRODUÇÃO

 

Na legislação brasileira predominou inicialmente a alienação fiduciária sobre bens móveis. Somente a partir de 1997, no bojo das reformas exigidas pelo neo-liberalismo, com o advento da Lei nº. 9541/97, introduziu-se no ordenamento jurídico brasileiro a alienação fiduciária sobre bens imóveis. Referida lei dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências.

 

O escopo dessa lei, na verdade, era criar uma nova modalidade de garantia ao financiamento imobiliário, até então garantido tão somente pela hipoteca, a qual de acordo com a disposição jurídica resta menos segura ao credor, dada à desvantagem de custo e a delonga em executá-las.

 

Justificam alguns doutrinadores que as garantias (hipoteca, penhor e anticrese) existentes nos sistemas jurídicos de origem romana não mais se coadunam com a atual sociedade dita industrializada.

 

Como conseqüência desta realidade os recursos para o setor imobiliário tornam-se escassos. Ou ao menos esta é a maior justificativa para tamanha mudança, sem que se mesure de forma mais ampla o aspecto social da questão e a ânsia insana de ganhos financeiros pelo mercado financeiro, que é justamente o aspecto dominante desta nova sociedade industrializada.

 

De acordo com Adroaldo Furtado Fabrício, foi a ideologia do novo sistema que fundamentalmente inspirou a elaboração da nova lei foi a preocupação de subordinar o comércio de imóveis e o fluxo de capitais nele envolvido às diretivas e critérios de mercado.

 

Imagina-se que, aí como em toda parte, o poder de auto-regulação e de disciplina espontânea do mercado terá o condão de assegurar soluções benéficas ao desenvolvimento dos negócios e garantirá vantagens a todos os envolvidos.

 

Conhecida como é essa premissa e a experiência que de sua aplicação temos, a nova sistemática é, sem dúvida, mais um fruto dileto do neoliberalismo econômico em moda. O ponto central de atenção, que, em matéria de aquisição de imóveis, esteve sempre no comprador-financiado, dado o manifesto interesse social envolvido, desloca-se para a lucratividade do comércio imobiliário, a segurança do investidor do ramo e os atrativos que a correspondente atividade econômica pode oferecer. O foco polarizador da atenção do legislador migrou do social para o estritamente econômico, visto, de resto, preferencialmente pelo ângulo do lucro.

 

Com efeito, todo o chamado Sistema Financeiro da Habitação, desde quando foi instituído, esteve sempre atento prioritariamente ao objetivo de facilitar a aquisição de imóveis destinados à moradia, notadamente pela clientela pertencente aos estratos economicamente inferiores da população, que nenhuma possibilidade têm de chegar a esse desiderato sem alguma forma de apoio creditício. Também se contemplou sempre, em um segundo momento e em sintonia com aquela meta principal, o estímulo à construção civil, atividade de grande interesse social em si mesma, dada a incomparável capacidade de absorção de mão-de-obra não-qualificada desse setor.

 

Por esta razão reza o artigo 17 :

 

As operações de financiamento imobiliário em geral poderão ser garantidas por:

I – hipoteca;

II – cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis;

III – caução de direitos creditórios ou aquisitivos decorrentes de contratos de venda ou promessa de venda de imóveis;

IV – alienação fiduciária de coisa imóvel.

§ 1º – As garantias a que se referem os incisos II, III e IV deste artigo constituem direito real sobre os respectivos objetos.

 

Em decorrência da contratação da alienação fiduciária institui-se a propriedade fiduciária, que nada mais é do que a propriedade resolúvel sobre o bem objeto de garantia, isto é, na definição de Clovis Bevilacqua, aquela que no próprio título de sua constituição encerra o princípio que a tem de extinguir, realizada a condição resolutória.

 

Como resultado vamos ter o desdobramento da posse, na qual o fiduciante será o possuidor direto enquanto que o fiduciário será o possuidor indireto da coisa imóvel.

 

 

3 – CONCEITO

 

A alienação fiduciária é o negócio jurídico pelo qual, o devedor o devedor ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.

 

A alienação fiduciária é uma espécie de negócio em que se utiliza a transmissão da propriedade para fins de garantia, porém de uma forma mais eficaz já que na propriedade fiduciária o devedor transmite a propriedade, passando-a ao credor que com ela permanecerá até que seja satisfeita a obrigação.

 

Podemos, portanto extrair a diferença essencial entre hipoteca – direito real em coisa alheia da propriedade fiduciária – direito real em coisa própria.

 

A questão contratual está rigidamente prevista no artigo 24 a seguir:

 

O contrato que serve de título ao negócio fiduciário conterá:

 

I – o valor do principal da dívida;

II – o prazo e as condições de reposição do empréstimo ou do crédito do fiduciário;

III – a taxa de juros e os encargos incidentes;

IV – a cláusula de constituição da propriedade fiduciária, com a descrição do imóvel objeto da alienação fiduciária e a indicação do título e modo de aquisição;

V – a cláusula assegurando ao fiduciante, enquanto adimplente, a livre utilização, por sua conta e risco, do imóvel objeto da alienação fiduciária;

VI – a indicação, para efeito de venda em público leilão, do valor do imóvel e dos critérios para a respectiva revisão;

VII – a cláusula dispondo sobre os procedimentos de que trata o art. 27.

 

Ademais a lei prevê que a propriedade fiduciária será constituída mediante registro, no competente Cartório de Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título, conforme previsto no artigo 23.

 

 

4 – PRINCIPAIS ELEMENTOS

 

4.1 – Sujeitos Do Contrato

Normalmente participam do contrato o devedor-fiduciante, o proprietário do bem imóvel transmitido em garantia e o credor-ficuciário, que é aquele que tem um crédito contra o devedor-fiduciante.

 

Não poderia ser diferente a exigência de que ambas as partes tenham capacidade para contratar e alienar, notadamente para dispor de seus bens, uma vez que através desse contrato faz-se a transmissão da propriedade de um imóvel do devedor-fiduciante para o credor-fiduciário. Por conseguinte na contratação de uma alienação fiduciária deve se fazer presente os requisitos exigidos para a alienação de imóvel por pessoas absolutamente capazes ou relativamente incapazes, pelos cônjuges e pelas pessoas jurídicas.

 

4.2 – Direitos e Obrigações

 

4.2.1 – Do fiduciante

 

São seus direitos:

 

·         Obter a propriedade plena após resgate da dívida, sob pena de multa para o fiduciário

 

·         Exercer o livre uso e fruição do imóvel

 

·         Intentar ações possessórias

 

·         Praticar atos conservatórios sobre o bem

 

·         Receber o saldo do leilão.

 

São seus deveres:

 

·         Pagar a dívida e acessórios

 

·         Pagar o IPTU, contribuições de condomínio e demais encargos sobre o imóvel

 

·         Responder civilmente perante terceiros

 

 

4.2.2 – Do fiduciário

 

São seus direitos:

 

 Receber seu crédito

 

·         Apropriar-se do produto da venda do imóvel para pagar-se, em caso de inadimplemento do fiduciante, entregando o saldo, se houver, ao fiduciante

 

·         Obter a consolidação da propriedade em seu nome

 

·         Intentar ação de reivindicação e ações possessórias

 

·         Obter a reintegração de posse do imóvel (liminar), após a consolidação

 

São seus deveres:

 

·         Respeitar a posse direta do fiduciante

 

·         Liberar a garantia fiduciária até 30 dias após receber seu crédito, sob pena de multa

 

·         Se inadimplente o fiduciante, promover sua notificação e demais atos de cobrança e leilão de acordo com a lei

 

·         Colocar o imóvel à venda, depois da consolidação, por meio de dois leilões públicos

 

·         Devolver ao fiduciante o saldo apurado na venda do imóvel

 

 

4.3 – Da consolidação do domínio imobiliário

 

O procedimento é bastante sumário quando se trta da consolidação do domínio do imóvel. A tutela jurisdicional foi excluída pela lei. O artigo 26 prevê :

 

Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário.

 

§ 1º – Para os fins do disposto neste artigo, o fiduciante, ou seu representante legal ou procurador regularmente constituído, será intimado, a requerimento do fiduciário, pelo oficial do competente Registro de Imóveis, a satisfazer, no prazo de quinze dias, a prestação vencida e as que se vencerem até a data do pagamento, os juros convencionais, as penalidades e os demais encargos contratuais, os encargos legais, inclusive tributos, as contribuições condominiais imputáveis ao imóvel, além das despesas de cobrança e de intimação.

 

Decorrido o prazo de que trata o § 1º sem a purgação da mora, o oficial do competente Registro de Imóveis, certificando esse fato, promoverá o registro, na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do fiduciário, à vista da prova do pagamento, pelo fiduciário, do imposto de transmissão inter-vivos e, se for o caso, do laudêmio.

 

 

4.4 – O procedimento da consolidação e o Código de Defesa do Consumidor.

 

O Código de Defesa do Consumidor está solidamente confirmado em seu campo de atuação. Embora de início tenha havido e ainda haja tentativas de não submeter o sistema financeiro a relações de consumo, a doutrina majoritária não tem o mesmo entendimento. Posteriormente a jurisprudência abraçou o mesmo entendimento, indo a sentido diametralmente oposto ao ensejado pela Federação Brasileira de Bancos.

 

Temos em seu artigo 53:

 

Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.

Ademais não houve inovação jurídica em relação ao Código de Defesa do Consumidor, pois o instituto pretensamente novo trazido pela Lei nº. 9541 já era contemplado por aquele. A evolução pura e simples do instituto da alienação fiduciária já estava contemplado naquele código.

 

Conclui-se, portanto que não cabe a aplicação literal dos artigos 26 e 27 da Lei nº. 9541. Em tal hipótese, e ainda de acordo com Adroaldo Furtado Fabrício, “ou essas disposições devem ser interpretadas de modo a não conduzirem à perda total das prestações já pagas (e sim apenas daquelas cujo valor corresponda ao dano decorrente da ruptura do contrato e efetivamente apurado em concreto), ou as relações de consumo permanecem fora do âmbito de incidência das aludidas regras jurídicas”.

 

 

5 – CONCLUSÃO

 

Desse pequeno estudo pode se concluir que referida lei veio muito mais para beneficiar o grande capital, do que propriamente facilitar a aquisição de uma moradia. São os reflexos do neoliberalismo e do neomercantilismo, que colocam acima de tudo os interesses financeiros, os ganhos, não suportando as perdas possíveis.

 

O neoliberalismo defende a absoluta liberdade de mercado e uma restrição à intervenção estatal sobre a economia, só devendo esta ocorrer em setores imprescindíveis e ainda assim num grau mínimo. Pretendem desta forma atingir o ápice do capitalismo intenso e irresponsável, qual seja o lucro sem a possibilidade da perda, o investimento sem risco.

 

O momento é bastante oportuno para uma reflexão a respeito. A crise americana que assola o mundo todo, tinha como forma de execução exatamente este modelo. E vemos agora suas instituições financeiras indo à derrota mais profunda assim como muitos de seus conglomerados industriais. No entanto agora o estado pode intervir. E desta intervenção eles se servem fartamente. Cabe aqui a reflexão. Estamos nós no caminho certo?

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

Chalhub, Melhim Namem – Negócio Fiduciário. – Rio de janeiro: Renovar, 1998. 396p.

Fabrício, Adroaldo Furtado – A alienação fiduciária de imóveis: aspectos processuais da lei nº 9.514/97. Disponível na internet em http://www.fabricioadvogados.com.br/Artigos/art8.htm

 

Zanetti, Robson – Alienação Fiduciária De Imóveis: Uma Alternativa A Hipoteca De Imóveis? Disponível na internet em http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/2791/ALIENACAO_FIDUCIARIA_

DE_IMOVEIS_UMA_ALTERNATIVA_A_HIPOTECA_DE_IMOVEIS

 

Legislação:

Disponível na Internet em 31/05/2009

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9514.htm

 

 

* Regina Maria de Paula, Estudante do Curso de Direito da Universidade de Ribeirão Preto – UNAERP.

 

Como citar e referenciar este artigo:
PAULA, Regina Maria de. Alienação Fiduciária em Garantia de Bens Imóveis. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/alienacao-fiduciaria-em-garantia-de-bens-imoveis/ Acesso em: 19 abr. 2024