Direito Civil

Impenhorabilidade do bem de família

Impenhorabilidade do bem de família

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

Inúmeras obras foram editadas, bem como, grande quantidade de artigos foram escritos a respeito da impenhorabilidade do bem de família, estatuída pela Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990.

    

Só que essas produções técnicas, em que pese o seu alto valor científico, ficaram mais no plano do direito intertemporal. Desde o início divisaram-se duas correntes antagônicas, na doutrina e na jurisprudência: a primeira batendo-se pela aplicação imediata da nova lei, por ser de ordem pública; a segunda, minoritária, respeitando a penhora já efetivada, apesar do disposto no art. 6o da Lei sob exame. Na realidade, tudo se resume em saber se a lei nova pode atingir situações constituídas ou extintas sob o regime da lei anterior, em face do princípio constitucional inserto no art. 5o, XXXVI. Não tem relevância jurídica, entre nós, a questão de se saber se a norma da lei em questão é de ordem pública ou de ordem privada.

    

Já decidiu o Plenário do STF que

 

“O disposto no art. 5o, XXXVI, da Constituição Federal se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva” (Adin 493-0-DF, Rel. Min. Moreira Alves, in Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, Lex-168/70).

 

    

Nesse v. acórdão o insigne Ministro Relator faz menção ao parecer de Antonio Machado da Silva e à lição de Limongi França:

 

“Seja como for, nos termos em que é formulada na Constituição Federal e na Lei de Introdução ao Código Civil, a proteção ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido refere-se com igual força aos facta praeterita e aos facta pendentia” (Parecer de Antonio Machado da Silva, adotado como relatório, p. 91).

 

“Em suma, o limite do efeito imediato é o Direito Adquirido em sentido amplo, de modo a abranger as outras duas noções de ato jurídico perfeito e de coisa julgada” (Limongi França, citado, p. 92).

 

    

De fato, no Brasil, esse princípio de respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada é de natureza constitucional e não legal, como ocorre, por exemplo, na França, o que afasta a aplicação da doutrina lá vigorante. Mas, não é este o propósito deste estudo.

    

O objetivo deste trabalho é o de extrair o alcance e conteúdo da impenhorabilidade prevista no art. 1o, através de interpretação conjugada com outros dispositivos da mesma Lei, e levando em conta os princípios gerais de direito, assim como, os princípios éticos.

    

Dispõe o art. 1o:

 

“O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta Lei. Parágrafo único A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados”.

 

    

O exame desse dispositivo logo revela tratar-se de impenhorabilidade circunscrita para as hipóteses de dívida contraída, isto é, aquela surgida por ato voluntário do devedor, o que afasta a impenhorabilidade nas hipóteses de dívidas resultantes de condenação judicial pela prática de atos ilícitos. Mesmo no casode tributo, que decorre de lei (obrigação ex lege), o crédito tributário sempre será o resultado da prática de ato lícito pelo sujeito passivo da obrigação tributária. Em outras palavras, o fato gerador da obrigação tributária ocorre sempre por um ato voluntário do sujeito passivo. Ocorrido o fato gerador a obrigação de pagar tributo surge por força de lei. Da mesma forma, ninguém é obrigado a contrair dívidas, porém, uma vez firmado o contrato de mútuo, por exemplo, surge a obrigação de resgatar a dívida nos termos contratuais (obrigação ex voluntatae).

    

Parece claro, portanto, que nas hipóteses de débitos resultantes de condenação judicial, por prática de ato ilícito não há que se falar em impenhorabilidade.

    

Entretanto, essa conclusão que se extrai com lapidar clareza é colocada em dúvida em face do art. 3o da mesma Lei que, após prescrever que a impenhorabilidade é oponível em qualquer processo civil, fiscal, trabalhista etc., enumera os casos de exceção à impenhorabilidade, dentre os quais, a hipótese de o bem “ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens” (art. 3o, VI).

    

Essa regra, se interpretada literalmente, estaria afirmando que não se excepciona da impenhorabilidade para execução de sentença civil condenatória. Não se pode perder de vista que este dispositivo cuida de exceção à regra excepcional de impenhorabilidade instituída pelo caput do art. 1o da citada Lei.

    

A finalidade dessa proibição legal é a de proteger a família assegurando a seus membros uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, protegendo os economicamente débeis, impedindo a miséria e a marginalização que a Constituição Federal elege como um dos objetivos fundamentais do Estado (art. 3o, inc. III da CF).

    

Por isso, essa lei há de ser interpretada de conformidade com os aspectos sócio-econômicos, éticos e morais de cada caso concreto. Do contrário, essa impenhorabilidade acabaria por destruir o princípio maior, ou seja, o princípio universal da sujeição do patrimônio às dívidas, que decorre do disposto no art. 5o, incisos LIV e LXVII da CF. Realmente, o primeiro inciso prescreve que ninguém será privado “de seus bens sem o devido processo legal”; o outro inciso prescreve que “não haverá prisão civil por dívida”, com as exceções aí especificadas.

    

Daí porque não se pode sustentar que a impenhorabilidade é regra e a penhorabilidade exceção. Pelo contrário, o princípio constitucional consagra como regra a sujeição do patrimônio do devedor às dívidas. Logo, a proteção dispensada pela Lei sob comento contempla, na verdade, uma exceção e não a regra prescrita no art. 591 do CPC. Não apenas o devedor, mas também, o credor precisa da satisfação de seu crédito para propiciar a si e sua família uma existência digna. E, também, a lei não pode e nem deve tolerar situação de injusto empobrecimento sob o manto de proteção da família do devedor.

    

Outrossim, o aspecto ético-moral não pode ser ignorado na interpretação desse texto. Não bastasse o princípio ético, que deve presidir edição de normas jurídicas em geral, o próprio art. 4o, caput, da Lei exclui do benefício da impenhorabilidade excepcional aquele que usa de má-fé para prejudicar o seu credor, conferindo ao juiz os poderes para tornar viável a execução dos bens desse devedor:

 

“Art. 4o – Não se beneficiará no disposto nesta Lei, aquele que, sabendo-se insolvente adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência familiar, desfazendo-se ou não da moradia antiga. § 1o – Neste caso poderá o juiz, na respectiva ação do credor, transferir a impenhorabilidade para a moradia familiar anterior, ou anular-lhe a venda, liberando a mais valiosa para execução ou concurso, conforme a hipótese”.

 

    

Os dois acórdãos a seguir transcritos bem ilustram o que expusemos até agora, repelindo o comportamento aético e imoral do devedor que tenta se beneficiar da legislação excepcional.

 

EMENTA: EXECUÇÃO – PENHORA – BEM DE FAMÍLIA – IMÓVEL RESIDENCIAL PROMETIDO À VENDA AO EXEQUENTE – NÃO INCIDÊNCIA DA LEI 8.0091/90, SOB PENA DE OFENDER DIREITO DO CREDOR À SATISFAÇÃO DE CRÉDITO DECORRENTE DO DESFAZIMENTO DO COMPROMISSO DO PRÓPRIO IMÓVEL QUE SERVE DE RESIDÊNCIA PARA A FAMÍLIA DOS DEVEDORES – EMBARGOS IMPROCEDENTES.

 

– Recurso provido.

 

    

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL nº 069.987-4/2, da Comarca de SÃO PAULO, em que é apelante JOSÉ ROBERTO AMARAL, sendo apelado ESPÓLIO DE FELISBERTO BORGES CORDEIRO, representado por sua inventariante:

    

ACORDAM, em Sexta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, dar provimento ao recurso.

 

    

1. Trata-se de embargos à execução, opostos pelos devedores, nos autos de ação de execução, que a respeitável sentença de fls. 45/48, cujo relatório fica fazendo parte integrante deste, julgou procedentes e em conseqüência, determinou o cancelamento da penhora em face da Lei 8.009/90, e a redução do valor da execução, que deverá prosseguir através da constrição de bens passíveis, além de condenar o vencido no pagamento das despesas judiciais, cujos honorários advocatícios estimados em 15% (quinze por cento) sobre o valor da execução.

    

Irresignado, apelou o embargado-exequente postulando, com a reforma do julgado, a rejeição dos embargos, argumentando que “no caso dos autos nem se trata de dívida contraída pelo executado e seus familiares, mas de uma dívida oriunda do descumprimento de contrato firmado, que tem como objeto de alienação o próprio imóvel que pretendem descrever como impenhorável. Há ressaltar que houve por parte dos apelados o ‘animus’ de desfazer do imóvel em questão, quando da assinatura do contrato, e admitir a impenhorabilidade do bem de família ao caso em tela é manifesta concordância da justiça com a conduta dolosa dos apelados, que vêm usando desse dispositivo legal para obter enriquecimento ilícito, mediante o descumprimento de sua obrigação de devolver a quantia que recebeu pela compra do imóvel que diz ser seu único bem e, por este motivo, impenhorável. Assim, é o caso de se indagar: é legal, constitucional, justo, ético e moral o embargado, ora apelante, ficar impossibilitado de exercer o seu direito a ressarcimento porque o único bem do devedor é um bem de família? Será esse espirito da Lei n° 8009/90? É claro que não, e os apelados sabem disso! Daí pode-se perceber a má-fé dos apelados em se utilizar desse dispositivo legal, uma vez que reconhecem a existência da dívida, mas sequer oferecem qualquer quantia em pagamento e nem nomeiam outros bens, ainda que móveis, à penhora”. Nessa conformidade, afastada a impenhorabilidade do questionado imóvel, pediu o prosseguimento da execução, invertendo-se os ônus da sucumbência. E, alternativamente, quanto aos honorários advocatícios, ressaltou que a respeitável sentença recorrida “julgou procedente em parte o valor da execução apresentada, havendo sucumbência por parte da embargante, ora apelada” (fls. 51/54).

    

O recurso foi preparado, recebido e respondido (fls. 51/54).

    

Este, em síntese, o relatório.

 

    

2. Realmente, a penhora incidiu sobre o imóvel, consistente em uma casa e seu respectivo terreno, situado à Rua Antonio Maciel Teixeira, 174 (antiga Rua F Lote 77, da Quadra D – 2a. parte – n° 131), do Conjunto Residencial Freguesia do Ó, Granja São Carlos, nesta Capital, como se depreende do auto respectivo, lavrado em 14 de outubro de 1996 (cf. apenso, Proc. Exec., fl. 304).

    

Ocorre, porém, que Felisberto Borges Cordeiro, em vida, e sua mulher, Dulce Carolina Borges, embargantes-executados, ora apelados, prometeram ceder, em novembro de 1985, ao embargado-exequente, ora apelante, os seus direitos e obrigações relativos ao referido imóvel, como se infere dos instrumentos particulares de “Recibo de Sinal e Princípio de Pagamento” e de “Transferência de Direitos e Obrigações de Contrato Particular de Compra e Venda, Financiamento, Constituição de Hipoteca e de Caução de Crédito Hipotecário” (cf. Autos em apenso, fls. 7/8 e 9/10).

    

Entretanto, em agosto de 1988, o cessionário ajuizou ação de prestação de fato, cumulada com perdas e danos, objetivando compelir os cedentes a procederem à transferência do imóvel para o seu nome, bem como, a sua posse, oportunidade em que os réus, além da contestação, ofereceram reconvenção; e a respeitável sentença julgou esta procedente e improcedente aquela e, em conseqüência, declarou rescindidos os supra mencionados “instrumentos particulares de fls. 7/8 e 9/10, retornando as partes ao ‘status quo ante’, com a restituição a favor do Reconvindo de todos os valores pagos” (cf. Autos em apenso, fls. 217/222), cuja decisão substancialmente mantida (cf. Acórdãos de fls. 250/251 e 277).

    

E, em cumprimento do julgado, sobre o imóvel, que foi objeto da transação desconstituída, incidiu a penhora para garantia da execução.

    

Diante desta digressão, e, sobretudo, da atitude assumida nos autos da execução, dessume-se que os executados deixaram de transferir o imóvel transacionado, fato este questionado em juízo; e, desconstituída a avença, não se animam em devolver, ao exequente, o que, contratualmente, dele receberam; entretanto, resistem, discordando com a penhora sobre o imóvel, sob o fundamento de que constitui bem de família, exatamente, o que, formalmente, lhe foi prometido à venda.

    

Essa inusitada posição causa perplexidade, pois o referido imóvel, que foi e continua sendo destinado à residência da família dos vendedores (devedores), poderia ser objeto de venda; porém, ante o seu desfazimento, no momento em que o comprador-credor postula a devolução do preço que lhes pagou, vêm de alegar a sua impenhorabilidade?

    

Percebe-se, facilmente, que, no mínimo, os executados, ora apelados, pretendem locupletar-se sem causa, acarretando, correlativamente, o empobrecimento do apelante, o que, sem dúvida, compromete a ordem jurídica.

    

De fato, a mudança patrimonial é inatacável; a própria substância do enriquecimento é que depende de justificação, pois que o mesmo, embora incorporado ao patrimônio, neste não deve permanecer sem causa (VALLE FERREIRA, in ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA, págs. 150/151).

    

É evidente, portanto, a pretensão dos executados de enriquecimento indevido, que se apresenta em conexão com o injusto empobrecimento do exequente, o que, realmente, elimina ou exclui a incidência da Lei 8.009/90, sob pena de ofender direito do credor à satisfação do seu crédito, que decorre do desfazimento do compromisso do próprio imóvel que serve de residência para a família dos devedores.

    

Isto posto, dá-se provimento ao recurso.

    

Participaram do julgamento os Desembargadores ERNANI DE PAIVA (Presidente) e MUNHOZ SOARES, com votos vencedores.

 

    

São Paulo, 19 de fevereiro de 1998.

 

    

MOHAMED AMARO Desembargador Relator

 

EMENTA: PENHORA – Embargos do devedor – comprovação de que a embargada teve seu imóvel parcialmente destruído pelo propriedade penhorada enquadramento no art. 3o e incisos da Lei nº 8.009/90 – sentença mantida – recurso não provido.

    

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO Nº 662.813-5, da Comarca de São Paulo, sendo apelante NAZAR MOHAMED HACHICHO (ESPÓLIO) e apelada HELENA DE OLIVEIRA FRAGOAS.

    

ACORDAM, em Décima Câmara do Primeiro Tribunal de Alçada Civil, por votação unânime, negar provimento ao recurso.

    

Embargos à execução de sentença, que foram desacolhidos para manter a penhora de imóvel residencial, a despeito da Lei nº 8.009/90, do que recorreu o Espólio, argumentando ser a propriedade penhorada o único imóvel familiar.

    

Recurso recebido, processado, havendo resposta e devidamente preparado.

    

É o relatório.

    

No caso dos autos, a r. sentença é de ser mantida.

    

Com efeito, o crédito da exequente decorreu de danos provocados pela propriedade penhorada em imóvel da embargada, tornando-o impossível de ser habitado, encontrando-se sob interdição municipal. (v. fotos de fls. 57 a 61).

    

O caso dos autos se assemelha àqueles em que o imóvel produziu os impostos, que devem ser pagos ou àqueles em que a propriedade se encontrava hipotecada.

    

A realidade é que a embargada, pelo que consta dos autos, teve seu imóvel parcialmente destruído pela propriedade penhorada e, agora, a prejudicado, sem recursos para a reforma, habita imóvel de parentes; habitação de favor.

    

Por isso que a exceção de impenhorabilidade pode se enquadrar no art. 3o e incisos da Lei 8009/90.

    

Por tais motivos, nega-se provimento ao recurso.

    

Presidiu o julgamento, com voto, o Juiz FRANK HUNGRIA e dele participou o Juiz PAULO HATANAKA (revisor).

 

    

São Paulo, 28 de maio de 1996.

 

    

REMOLO PALERMO Relator

 

    

O primeiro acórdão, relatado pelo ilustre Des. Mohamed Amaro, repeliu a tese da impenhorabilidade do bem de família (casa e respectivo terreno) sustentada pelo promitente-vendedor em execução movida pelo compromissário-comprador para haver o seu crédito, decorrente do desfazimento do compromisso desse mesmo imóvel, que servia de residência para a família do devedor.

    

Daí a indagação constante do relatório: é legal, constitucional, justo, ético e moral o embargado, ora apelante, ficar impossibilitado de exercer o seu direito à ressarcimento porque o único bem do devedor é um bem de família? Será esse espírito da Lei nº 8.009/90? Pondera o v. acórdão que “essa inusitada posição causa perplexidade, pois o referido imóvel, que foi e continua sendo destinado à residência da família dos vendedores (devedores), poderia ser objeto de venda; porém, ante o seu desfazimento, no momento em que o comprador-credor postula a devolução do preço que lhes pagou, vêm de alegar a impenhorabilidade? Percebe-se, facilmente, que, no mínimo, os executados, ora apelados, pretendem locupletar-se sem causa, acarretando, correlativamente, o empobrecimento do apelante, o que, sem dúvida, compromete a ordem jurídica”.

    

Percebe-se claramente o aspecto ético-moral privilegiado na interpretação do texto legal.

    

O segundo acórdão, relatado pelo juiz Remolo Palermo do 1o TAC, cuidou de um caso por nós patrocinado, versando sobre a penhora do imóvel residencial do devedor, que fora condenado à indenização pela prática de ato ilícito. O réu, desobedecendo às ordens da autoridade administrativa competente, prosseguiu na construção irregular de uma edícula, que acabou desabando sobre a propriedade vizinha destruindo parcialmente o prédio habitado pela autora. Este prédio sofreu interdição pela Prefeitura. Sem condições financeiras para efetuar a recuperação do prédio a autora passou a habitar imóvel de parentes (habitação de favor com todos os incômodos e constrangimentos). Condenado ao ressarcimento o réu veio a falecer e o seu Espólio apresentou embargos à execução, alegando impenhorabilidade do imóvel residencial por se constituir um bem de família. A decisão monocrática rejeitou os embargos porque “o ato ilícito julgado no feito principal nada tem de similitude com a dívida voluntariamente contraída prevista no art. 1o da Lei 8.009/90”. O v. acórdão manteve a r. sentença sob o fundamento de que “o caso dos autos se assemelha àqueles em que o imóvel produziu os impostos, que devem ser pagos ou àqueles em que a propriedade se encontrava hipotecada”, pelo que “a exceção de impenhorabilidade pode se enquadrar no art. 3o e incisos da Lei 8.009/90”.

    

Neste caso, também, embora não expresso no v. acórdão nota-se, em suas entrelinhas, que foram sopesados dois valores em confronto: de um lado a necessidade habitacional da credora, que teve a sua moradia destruída pela ação do devedor; de outro lado, a proteção que deve ser dispensada à família do devedor (no caso, à viúva) mitigada pelo fato de os filhos não mais residirem no imóvel apenhado.

    

Novamente, o enfoque ético-moral embasou a aplicação da norma jurídica enquadrando, genericamente, a exceção da impenhorabilidade nos incisos do art. 3o da Lei sob exame.

    

Finalizando, há uma tendência da jurisprudência no sentido de, através de uma interpretação teleológica e sistemática da Lei 8.009/90, privilegiando os aspectos éticos-morais, excluir da impenhorabilidade do bem de família aquelas hipóteses de execução de débito resultante de ato ilícito. Nesses casos tem-se invocado a regra de exclusão de impenhorabilidade prevista no art. 3o, inciso VI da Lei sob comento, contrariando, aparentemente, a regra da hermenêutica, segundo a qual interpreta-se restritivamente as normas excepcionais: Ap. Civ. nº 614.725-Rel. Ribeiro de Souza, DJ de 9/8/95; Ap. Civ. nº 43990-Rel. Evaldo Veríssimo, DJ de 6/6/95; AG nº 469.437, Rel. Amauri Ielo, DJ de 20/2/91. No mesmo sentido: AG 459.421-8 – Rel. Silvio Venosa – MF 634/136; MS 464.704-5 – Rel. Paulo Razuk – MF 1033/97; MS 466.810-6 – Rel. Carlos Roberto Gonçalves – MF 1027/499; MS 467.504-7 – Rel. Toledo Silva – MF 1032/03; AC 469.646-8 – Rel. Bruno Netto – MF 1025/132; AG 471.247-6 – Rel. Amauri Ielo – MF 1038/70; AG 471.580-6 – Rel. Guimarães e Souza – MF 1025/189; Ag 472.592-O – Rel. Silvio Marques – MF 1036/19; AG 474.236-5 – Rel. Alvares Lobo – Mf 1030/243; AG 475.576-8 – Rel. Amauri Ielo – MF 1038/73; AG 475.804-7 – Rel. Carlos De Carvalho – MF 1028/277; AG 476.O12-3 – Rel. Guimaraes E Souza – MF 1036/132; AG 477.837-4 – Rel. Caio Graccho – MF 1039/188; AG 478.403-2 – Rel. Nivaldo Balzano – MF 1041/252; AG 479.281-O – Rel. Marcondes Machado – MF 1041/258.

 

 

* Advogado e professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário, Diretor da Escola Paulista de Advocacia e Ex-Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica da

  Procuradoria Geral do Município de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Impenhorabilidade do bem de família. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/impenhorabilidade-do-bem-de-familia/ Acesso em: 28 mar. 2024