Direito Administrativo

O abuso da atividade econômica na venda de materiais de proteção contra Coronavírus dentro de uma diminuta análise conceitual da virtude em Aristóteles, do Utilitarismo de Bentham e Mill e a moral em Kant

Samuel Santos da Silva[1]

Mário Saveri Liotti Duarte Raffaele[2]

Agir moralmente significa agir por dever – em obediência à lei moral. A lei moral consiste em um imperativo categórico, um princípio que exige que tratemos as pessoas com respeito, como fins em si mesmas. [3]

                                                               Immanuel Kant

Resumo.

A atividade econômica é algo de extrema necessidade na vida da sociedade, pois, nela se encontra a satisfação das necessidades e a produção de bens e oferecimento de serviços.

Não se pode negar que o Estado exerce fundamental função no sentido de normatizar, fiscalizar e coibir abusos que tais atividades podem empreender sobre os consumidores.

A fim de abordar o atual momento em que o mundo enfrenta uma pandemia devido ao surto do COVID-19, este breve artigo visa discutir se as atitudes dos comerciantes que elevam os preços de materiais como álcool, luvas e máscaras estão dentro dos limites morais.

Neste ligeiro artigo serão abordados os pensamentos e discussões baseadas no livro “Justiça o que é fazer a coisa certa” do ilustre professor de filosofia política Michael Sandel da amada Universidade de Harvard onde alguns de seus conceitos serão analisados frente às atitudes comerciais brasileiras neste momento de grande demanda a tais produtos.

Destaca-se que este artigo visa discutir atitudes comerciais realizadas no Brasil, bem como, a atitude do Poder Público frente a tais ações comerciais.

Palavras – Chave: COVID-19. Abuso poder econômico. Poder Público. Conceitos filosóficos. Justiça o que é fazer a coisa certa.

ABSTRACT

Economic activity is something of extreme necessity in the life of society, as it finds satisfaction of needs and production of goods and provision of services.

It is not possible to deny that the State plays a fundamental role without any sense of regulating, inspecting and restraining that such activities can undertake on consumers.

In order to address the current moment when the world is facing a pandemic because of COVID-19, this brief article aims to discuss whether the attitudes of traders who raise the prices of materials such as alcohol, gloves and masks are within moral limits.

In this article, we discuss the thoughts and discussions about the book “Justice or what is right”, illustrated by professor of political philosophy Michael Sandel, from Harvard University, at Harvard University, where some of its concepts are analyzed according to with current statistics at the moment. great demand for such products.

It is noteworthy that this article aims to discuss commercial attitudes carried out in Brazil, as well as, an attitude of the Public Power in the face of such commercial actions.

Keywords: COVID-19. Abuse economic power. Public Power. Philosophical concepts. Justice which is doing something right.

1. Da base comercial.

Através da produção de bens, serviços a atividade econômica realiza a produção de riquezas.

Toda a estrutura de um país precisa de tais mecanismos, pois, a economia do mesmo é algo de extrema importância para que haja a possibilidade de se oferecer aos povos melhores possibilidades de circulações econômicas e o proporcionar de melhores condições de vida.

A atividade econômica é uma base para a sustentação de um sistema econômico que permite o gerar de riquezas sendo, portanto, objeto de elevados estudos.

Acontece que dentro do poder econômico, muitos de seus operadores agem de maneira predatória e exploratória massacrando com tais atitudes seus consumidores.

Para trabalhar a questão dos abusos do poder econômico, este texto se baseará nos pensamentos e estudos do professor Michael Sandel[4], que discute vários temas sociais dentro de um prisma político filosófico.

2. A pandemia.

Com o advento do COVID-19[5] e a grande demanda por produto de profilaxia, grande tem sido o aumento dos preços dos produtos que auxiliam na prevenção do contágio.

Um dos produtos mais procurados nestes últimos dias, por exemplo, o álcool, tem sido um dos que têm sofrido elevação em diferentes estabelecimentos se tornando um jugo sobre os consumidores.

Ao se analisar no tópico “Fazendo a coisa certa[6]” do livro do professor Michael Sandel[7] (2017, p. 11), este saudoso professor faz menção a diferentes fatos que ocorreram na Flórida devido ao furacão Charley que além de ter ceifado vidas e ocasionado prejuízos de 11 bilhões de dólares, gerou, à vista disso, grandes discussões a respeito dos preços que foram impostos à sociedade que naquele momento passava por um caos.

Dentro da narrativa do impacto sofrido por causa do furacão, Sandel (2017, p. 11) descreveu a forma abusiva empreendida por aqueles que prestavam serviços e, destacou que em um posto de gasolina em Orlando sacos de gelo eram vendidos a 10 dólares sendo que seu preço originário era de 2 dólares, fato que devido ao grande calor de agosto as pessoas se viram obrigadas a comprar o gelo por causa da falta de ar-condicionado e refrigeradores. Prestadores de serviços que retiravam árvores de telhados cobravam 23 mil dólares para realizar tal serviço e, devido à queda das árvores muito se procurou tal serviço e por serrotes. Sandel (2017, p.11) descreveu também que uma senhora de 77 anos que fugia da furação com uma filha deficiente e seu marido já idoso teve que pagar 160 dólares por um quarto por uma noite que normalmente tem seu preço de 40 dólares e que lojas vendiam por 2 mil dólares pequenos geradores que custavam 250 dólares.

Nesta esteira de pensamento, ao se fazer um paralelo com a condição econômica vivenciada frente ao advento do COVID-19, não se pode negar que alguns estabelecimentos devido à necessidade de proteção das pessoas têm exacerbado nos preços gerando um descontentamento social por parte dos consumidores.

Não se pode combater o livre mercado e, mesmo que tenha como garantia constitucional brasileira o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, devendo que as qualificações exigidas por lei sejam atendidas conforme art. 5º, INC XIII [8], deve-se, independente de liberdade dos mercados, combater o abuso econômico e protege a sociedade nos momentos em que fragilidade humana é aumentada, uma vez que, não há margem para a liberdade de exploração nos preços.

Ao se analisar a expressão “Depois da tempestade vem os abutres”, o que se extrai desta concepção é que para estes abutres, tal tempestade é o porto seguro para a realização de abusos econômicos.

O Estado é peça chave nestes momentos em que os interesses do comercio colidem com os da sociedade, pois, existem situações em que os preços são elevados e a sociedade adquire determinados produtos por necessidade e pagam tais preços por imposição e não por liberdade. Ou seja, se o preço, por exemplo, normal do álcool for 7 reais e, devido a uma situação extrema certos comerciantes no mercado o vendem a 20, 30 reais ou mais, não se pode falar em liberdade do consumidor, pois, se há socialmente alguma exigência de que determinadas medidas sejam tomadas frente a algum colapso, como se pode afirmar que tal atitude não visa tolir o consumidor quando a necessidade de aquisição de referido produto se faz necessário, porém, vem onerosa?

Sandel (2017, p. 14) ao tratar sobre coibição de abusos de preços e liberdade dos mercados destaca que em questionamento aos altos preços, os opositores dos preços elevados frisam que para pessoas cujo poder econômico seja elevado, o aumento em determinados preços não passa de um mero aborrecimento, porém, para aqueles cuja posse é modesta, tais preços tornam-se uma dificuldade real.

Ao se referir ao abuso de poder Sandel (2017, p, 15) faz referencia a Crist que descreve: “Compradores sobre coação não tem liberdade. Suas compras de artigos para suprir suas necessidades básicas, assim como abrigo seguro, são algo que lhes é imposto pela necessidade”. (CRIST apud SANDEL, 2017, p. 15).

Crist ainda citado por Sandel (2017, p. 15 – 16) destaca quanto ao argumento da virtude: “a ganância é um defeito moral, um modo mau de ser, especialmente quando torna as pessoas indiferentes ao sofrimento alheio onde, mas do que um defeito pessoal, ela se contrapõe à virtude cívica”. (CRIST apud SANDEL, 2017, p. 16).

Sandel (2017, p. 15) destaca que uma boa sociedade em tempos de dificuldade se mantém unida e as pessoas de maneira comum buscam se ajudar em tempos difíceis. A ganância para em excesso para Sandel (2017, p. 16) tem que ser desencorajada na medida do possível, pois, esta é um vício e as leis de abuso de preços devem punir a ganância no lugar de recompensá-lo, e mesmo que não ponha fim à ganância esta pode impor limites à suas expressões

3. Uma breve visão sobre o prisma de Aristóteles.

Aristóteles citado pelo professor Sandel (2017, p. 234) no quesito justiça declara que “justiça é dar a cada pessoa o que ela merece, dando a cada um o quê lhe é devido”. (ARISTÓTELES apud SANDEL, 2017, p. 234).

Por conseguinte, no que se refere à teoria de Aristóteles, Sandel (2017, p. 233) ao estudar o conceito, declara que necessário se faz conhecer duas concepções de tal filosofia política, ou seja, justiça teleológica[9] e justiça honorífica[10].

Tendo em vista esta breve explanação de um dos pensamentos de Aristóteles feita por Sandel (2017, p. 234), indaga-se, portanto, se seria justo que a sociedade em momentos de fragilidade receba como merecimento os altos preços do mercado em momentos de calamidade.

A filosofia de Aristóteles permite um questionamento sobre tais atitudes e, dentro do prisma da virtude moral, este destaca que quando um comportamento virtuoso é praticado, propensa está quem o pratica a agir dentro dos preceitos da virtude. Ou seja, Sandel (2017, p. 244) descreve que a virtude moral de Aristóteles é a virtude do habito oriunda da prática, ou seja, nos tornamos justos praticando ações justas; corajosos quando praticamos ações corajosas.

Se a virtude é oriunda da pratica, depreende-se, portanto, que se o mercado em tempos de crise praticar a venda de produtos dentro das bases normais do mercado em seus preços sem impor exageros de valores, virtuosa será a pratica mercantil.

Não se pode negar que no Brasil existe uma pesada carga tributária sofrida pelos empreendedores dos diferentes ramos de atuação e, outro fato de relevante importância seria a discussão da necessidade de redução da carga tributária dos produtos de maiores demandas em épocas de calamidade, pois, tal redução, visará contribuir com o equilíbrio econômico em momentos de maiores demandas a certos produtos.

Por conseguinte, o papel do governo e dos órgãos de fiscalização tem uma dupla função; buscar elaborar medidas de equilíbrio para os fornecedores de bens e serviços e o controle de preços para que a sociedade não sofra com suas imoderações.

4. As teorias de Jeremy Bentham e John Stuart Mill frente a tal concepção.

4.1 Para Bentham.

A pandemia atual mostra dois lados, de um a sociedade que se encontra vulnerável, de outro, o mercado.

Sandel (2017, p. 45) em seu livro [11] corrobora narrando um breve fato onde quatro marinheiros estavam no Atlântico Sul à deriva em um bote salva – vidas. Sandel (2017, p. 45) destaca que os marinheiros comeram nabos nos primeiros três dias e, que no quarto dia comeram uma tartaruga onde foram sobrevivendo até que ficaram sem ter o que comer. Sandel (2017. 45) também destaca que dentre os marinheiros existia um que era órfão e tinha 17 anos que estava doente e que bebera muita água salgada. Por causa da necessidade de sobrevivência, destaca Sandel (2017, p. 45) que o capitão sugeriu que realizassem um sorteio para decidir quem iria morrer a fim de que os outros pudessem sobreviver. Mesmo tendo a objeção de um dos marinheiros, o capitão, mesmo não tendo realizado o sorteio, no dia seguinte matou o jovem de 17 onde todos os outros marinheiros o comeram, ocasião em que passando 24 dias do desjejum o resgate chegou e resgatou os marinheiros.

Percebe-se, por estas linhas supra que decisões foram tomadas. Os marinheiros estavam passando por um momento de crise e, durante ela, uma dura decisão foi tomada; sacrificar um jovem órfão e doente par que os outros pudessem sobreviver.

Resta, portanto, o questionamento se tal atitude foi certa, pois, para alguns a necessidade pela sobrevivência permitiria que determinadas atitudes fossem tomadas; enquanto para outros, independente da necessidade, a moral é algo maior e deve ser preservada e a vida do rapaz deveria ser poupada.

Analogicamente, podemos visualizar a sociedade como o marinheiro mais frágil em meio à pandemia atual; a sociedade é aquela que esta bebendo água salgada e se encontra doente; sendo que, do outro lado estão aqueles que possuem a detenção de maior força, melhor posição para tomada de decisão e controle.

Sandel (2017, p. 47) no referido caso do “bote salva-vidas” em uma explicação prévia de qual a atitude certa a se tomar, declara sobre os argumentos apresentados em seu livro que existem duas abordagens opostas da justiça, onde a primeira cita que a moral de uma ação depende unicamente das conseqüências que ela acarreta; sendo que, a coisa certa a ser fazer é aquela em os melhores resultados serão produzidos e que todos os seus aspectos são considerados e, que a segunda abordagem diz que as conseqüências não são tudo com o que devemos nos preocupar, moralmente falando; devemos, portanto, observar certos deveres e direitos por razões que não dependem das conseqüências sociais de nossos atos. (SANDEL, 2017, p. 47).

Em alusão ao utilitarismo, Sandel (2017, p. 48) cita Jeremy Bentham (1748 – 1832) fundador do tal teoria que se destaca no conceito de que o maior objetivo da moral deve ter preponderância do prazer sobre a dor, maximizando assim, a felicidade.

A concepção do que é fazer a coisa certa para Bentham citado por Sandel (2017, p. 48) se destaca no entendimento de que a coisa certa a ser fazer é aquela que pode maximizar a utilidade[12] desprezando inclusive os direitos naturais. (BENTHAM apud SANDEL, 2017, p. 48).

No que tange aos direitos individuais Sandel (2017, p. 51) destaca:

A vulnerabilidade mais flagrante do utilitarismo, muitos argumentam, é que ela não consegue respeitar os direitos individuais. Ao considerar apenas a soma das satisfações, pode ser muito cruel com o indivíduo isolado. Para o utilitarista, os indivíduos têm importância, mas apenas enquanto as preferências de cada um forem consideradas em conjunto com as de todos os demais. E isso significa que a lógica utilitarista, se aplicada de forma consistente, poderia sancionar a violação do que consideramos normas fundamentais da decência e do respeito no trato humano. (SANDEL, 2017, p. 51).

Logo, pela teoria utilitarista de Bentham citado por Sandel (2017, p. 51) depreende-se que muito embora esta não vise atender e respeitar a um direito individual, tal concepção visa atender e maximizar a importância aos interesses conjuntos dos indivíduos. Portanto, ao se analisar a atual situação dos consumidores no presente momento da saúde, pode-se dizer que a máxima felicidade e sobreposição da dor estariam presentes dentro de uma abordagem onde se percebe que um conjunto de indivíduos buscam maximizar seu bem-estar tendo um razoável atendimento de suas necessidades sem sofrimento de abusos. Ora, no quadro atual não se busca o beneficio de apenas um individuo frente aos elevados preços dos produtos, mas também, de outros que lutam pela mesma causa.

Resta neste momento, fazer um parâmetro para saber quem é quem. Ou seja, se a sociedade é a maioria ou os empreendimentos que atuam no mercado de consumo. Logo, se o mercado for maioria, o lucro que este obtém através da dor imposta pelos altos preços sobre seus consumidores estará embasada em uma justa utilidade, porém, se maioria for à sociedade, a utilidade desta deverá ser manisfeta coibindo, por conseguinte, as devastações abusivas do mercado.

Muito embora Bentham reduza tudo o que tem importância moral a um escala de prazer e dor, indaga-se quem deve no atual quadro ser contemplado pelo prazer e quem pela dor já que sua teoria não dirige valores morais aos direitos individuais e da dignidade humana.

4.2 Para John Stuart Mill.

Sandel (2017 p. 64) cita John Stuart Mill (1806 – 1873) que através de seu livro On Liberty defendia a liberdade individual nos países de língua inglesa onde o ponto central de tal princípio se baseava no entendimento de que desde que fosse respeitado o direito dos outros, as pessoas poderiam fazer o que quisessem.

Para Mill citado por Sandel (2017, p. 64):

O governo não deve interferir na liberdade individual a fim de proteger uma pessoa de si mesma ou impor as crenças da maioria no que concerne à melhor maneira de viver. Os únicos atos pelo quais uma pessoa deve explicações à sociedade, segundo Mill, são aquelas que atingem os demais. (MILL apud SANDEL, 2017, p. 64).

Ora, extrai – se das palavras de Mill através de Sandel (2017, p. 64) que muito embora o governo não deva interferir na liberdade individual e impor o que a maioria acredita ser a melhor maneira de viver este, por sua vez, poderá realizar tal intervenção quando outros direitos e outros indivíduos são atingidos.

Ao se fazer um quadro frente à questão da pandemia atual provocada pelo COVID-19, baseando- se na regra utilitarista de Mill pode-se depreender que a ação dos PROCONS e órgãos de fiscalização estão agindo dentro da máxima de que se direitos de terceiros estão sendo atingidos, o Estado, logo, deve coibir tal prática e assim está sendo feito. Por outro lado, o questionamento que também defronta nesta teoria de Mill de que o governo não deve interferir nas liberdades individuais aqui no Brasil não é algo de aplicação absoluta, pois, a liberdade apesar de ser uma garantia constitucional não pode ser avocada a fim de ferir bens maiores independente se forem de terceiros.

Portanto, se o mercado é um e a sociedade consumidora é outra, temos dois grupos distintos.

Como visto, por estar agindo de forma abusiva na estrutura econômica, o mercado tem ferido direito de terceiros através de altos preços, razão pela qual, o governo interveio e está impondo sanções a tais atitudes.

Agora, basta analisar se os princípios da teoria utilitarista se aplicam ao momento atual e em qual limite ela encontra sua pedra de toque.

5. Uma pequena análise do princípio moral de Kant frente ao mercado e seus abusos.

Sandel (2017) ao citar pensadores de elevada importância no campo da filosofia não deixou de lado as concepções do filosofo Immanuel Kant (1724 – 1804).

Sandel (2017, p. 137) destaca que Kant se opunha à doutrina utilitarista de Jeremy Bentham e que para Kant “a moral não diz respeito ao aumento da felicidade ou a qualquer outra finalidade. Sendo que a moral, ao contrario, afirma que ela está fundamentada no respeito às pessoas como fins em si mesmas”. (KANT apud SANDEL, 2017, p. 137).

Sandel (2017, p. 136) destaca ainda que para Kant as concepções atuais de direitos humanos universais são definidas através da dignidade humana.

Voltando a análise do atual cenário comercial e os abusos econômicos, muito se pode questionar o real objetivo do mercado frente às necessidades humanas no objetivo da manutenção da vida.

Kant citado por Sandel (2017, p. 137) destaca que a moral tem como principio a utilização do ser humano como um fim e não como um meio. Ou seja, questionamentos não faltam se o mercado usa a sociedade como um meio de obtenção de lucros, mesmo que imoderados, ou as enxerga como pessoas dignas de direitos e de bons serviços que atendam as suas necessidades.

A crítica de Kant ao utilitarismo se baseia no entendimento de que para o utilitarismo a moral se encontra no aumento da felicidade ou outra finalidade, porém, Kant concede que o aumento da felicidade sem respeito à dignidade humana não pode ser chamada de moral.

Ora, se a utilidade utilitária visa aumentar a felicidade ignorando a dor, inoportuno seria o questionamento de que ignorar a dor gerada pelos preços abusivos tem gerado felicidade para muitos que oferecem seus bens e serviços.

Sandel (2017, p. 78) quanto ao libertarismo destaca:

Segundo os libertários, a distribuição justa de renda e riquezas é aquela que tem origem na livre troca de bens e serviços, em um mercado sem restrições. Regular esse mercado é injusto, dizem eles, porque viola a liberdade individual. (SANDEL, 2017, p. 138).

Ao se analisar tal citação do entendimento libertário, observa-ser que para tal pensamento, a imposição de restrição e regularização se torna algo injusto e violador da liberdade.

Pelas concepções libertárias, a livre troca de bens e serviços tem que ser dentro de um mercado sem restrições, fato este, que dentro das normas de direito brasileiro não encontra total embasamento, pois, o Estado é o garantidor do bem estar social e muitas vezes este bem estar é garantido através da realização de controles.

O Estado não viola a liberdade individual quando exerce controle, pelo contrário, no Brasil, tal controle é quem garante a liberdade, principalmente dos consumidores.

Kant citado por Sandel (2017, p. 154) destaca: “que o homem, e em geral todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, e não meramente como um meio que possa ser usado de forma arbitrária por essa ou aquela vontade”. (KANT apud SANDEL, 2017, p. 154).

Portanto, se os fornecedores de bens e serviços visarem seus consumidores dentro de uma visão de fim e não como meio muitas atitudes terão um elevado cunho moral, pois, a finalidade de tal atitude levará ao bom atendimento do bem geral.

6. Da fiscalização pelo Estado.

Como dito, o Estado tem extrema importância no atual cenário comercial, pois, a autonomia e o poder de tutelar os direitos a este pertencem.

A fim de viabilizar a aplicação de regras de prevenção aos abusos econômicos em detrimento do COVID-19, o Governador do Distrito Federal no ultimo dia 19/03/2020 sancionou o Decreto 40.539 que tem como objeto a elaboração de medidas para enfrentamento de emergência de saúde publica.

Nesta lei em seu artigo 5º se lê:

Art. 5º Considerar-se-á abuso do poder econômico a elevação de preços, sem justa causa, com o objetivo de aumentar arbitrariamente os preços dos insumos e serviços relacionados ao enfrentamento do COVID-19, na forma do inciso III do art. 36 da Lei Federal n° 12.529, de 30 de novembro de 2011, e do inciso II, do art. 2° do Decreto Federal n° 52.025, de 20 de maio de 1963, sujeitando-se às penalidades previstas em ambos os normativos[13]

Quanto à lei 12.529, art. 36, Inc. III:

Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:

III – aumentar arbitrariamente os lucros;

Na mesma esteira, o Decreto Federal 52. 025, no art. 2º, Inc. II assevera:

Art. 2º Consideram-se formas de abuso do poder econômico:

II – elevar os preços sem justa causa, nos casos de monopólio natural ou de fato, com objetivo de aumentar arbitrariamente os lucros sem aumentar a produção;[14]

Não se pode negar que os PROCONS e outros órgãos do Estado têm agido a fim de garantir a que leis sejam atendidas e que os consumidores não sofram maiores abusos por parte das ações comerciais, razão pela qual, até mesmo prisão foi efetuada por causa de abuso empreendido ao consumidor.

Como meio da manutenção da dignidade humana, o Estado assim age para que haja equilíbrio nas relações entre aqueles que fornecem e aqueles que compram.

7. Outra possibilidade de se amenizar o problema.

Outra possibilidade de se reduzir tais impactos é diminuir a carga tributária dos produtos de profilaxia na situação atual, pois, com a crescente demanda, muito tem sido comprado por parte dos comércios e é muito provável que os mesmos estejam pagando preços elevados em tais produtos a fim de disponibilizá-los no mercado.

Contudo, mesmo que esta situação demonstre uma via de mão dupla, o consumidor final não deve arcar com preços abusivos ferindo sua condição e dignidade humana.

O Estado, por conseguinte, tem realizado um importante trabalho através das fiscalizações, porém, há abusos que ainda estão sendo empreendidos e, quanto maior for à atuação do Estado e da sociedade em denunciar tais abusos, melhor será para todos o controle do sistema econômico neste momento de pandemia.

8. Conclusão.              

Por estas linhas buscou-se analisar a conduta do mercado frente à atual pandemia focando-se na atuação do comercio brasileiro.

Tal análise tem o desafio de trilhar sobre as concepções filosóficas de pensadores estudados pelo professor Michael Sandel.

Através do livro Justiça o que é fazer a coisa certa se criou o desafio de levantar questionamentos sobre os abusos dos preços sofridos pela sociedade com o advento da COVID-19.

Não se pode negar que independente de tais concepções, o abuso de poder econômico é algo a ser contido e desencorajado, pois, não se pode negar que a demanda por determinados produtos tenha o condão de permitir o alavancamento de preços, porém, o mercado tem que sofrer limite, principalmente, quando tal demanda começa a prejudicar a sociedade e em especial os mais desfavorecidos.

Este artigo nos leva a questionamentos sobre o marco moral que o abuso de poder econômico é capaz de promover utilizando a sociedade como meio de angariamento de riquezas e não como um fim em si mesmo no quesito de satisfação desta sociedade.

Referências.

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BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. In: CÉSPEDES, Lívia; RICHA, Fabiana Diniz (Colab). Vade Mecum. 24. Ed. São Paulo: Saraiva 2017.

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[1] Pós – Graduando em Gestão Escolar pela USP – Universidade de São Paulo – Campus ESALQ; Pós – Graduando em Direito Internacional pelo CEDIN – Centro de Direito Internacional; Bacharel em Direito – Faculdade Mineira de Direito – PUC Minas (Contagem); Membro Colaborador da Comissão de Direito Internacional da OAB Subseção de Contagem; Membro Colaborador da Comissão de Mediação da OAB Subseção de Contagem; Membro Colaborador da Comissão OAB vai á Escola da OAB Subseção de Contagem; Mediador; Conciliador; Capelão Evangélico formado pela UCEBRAS – União dos Capelães Evangélicos do Brasil; Possui certificação nos cursos de Justiça e Contratos pela Harvardx; Liderança e Transformação em Educação pela New Castlex e Entrevista e Pesquisa Qualitativa pelo MITX; Pesquisador. Contato:  juristasamuel@gmail.com /  samuel.sdsilva@usp.br. ORCID: 0000-0002-4338-7853

[2] Bacharel em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bacharel em Economia pela Faculdade de Economia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-graduado latu sensu(Especialização) em Derecho Económico pela Facultad de Derecho da Universidad Deusto de Bilbao(Espanha). Mestre em Derecho Económico – Universidad Deusto de Bilbao (Espanha). Doutor em Derecho Económico Internacional pelas Universidad Deusto de Bilbao (Espanha) e pela Manchester University (Inglaterra). Doutor em Econometria e Metodi Quantitativi pela Facoltà di Economia da Università degli Studi di Messina (Italia). Pesquisador visitante da Manchester University (Inglaterra). Pós-Doutor em Direito Econômico Internacional pela Faculté de Droit da Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. É advogado associado ao Escritório Raffaele & Raffaele Advocacia Associada e Professor Adjunto IV da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC – MG), da disciplina Direito Econômico, Direito Internacional Público e Privado. Tem experiência na áreas de Direito Econômico com ênfase em Direito Concorrencial e Financeiro, Direito Internacional Público e Privado, Direito Criminal, Economia Internacional, Bolsa de Valores, CADE, CVM Regulamentação de Mercados. É Professor Titular no curso de pós-graduação do Instituto de Educação Continuada da PUC – MG. Tem experiência em gestão de cursos superiores, na qualidade de Coordenador de Ensino e ainda trabalhou como Relações Internacionais na Universidad Deusto de Bilbao (Espanha) e na Università degli Studi di Messina (Itália).

[3] KANT apud SANDEL, 2017, p. 156.

[4] Justiça o que é fazer a coisa certa, 24 ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2017. 347 p.

[5] Coronavírus é uma família de vírus que causam infecções respiratórias. O novo agente do coronavírus foi descoberto em 31/12/19 após casos registrados na China. Provoca a doença chamada de coronavírus (COVID-19). Disponível em: < https://coronavirus.saude.gov.br>. Acesso em: 20 mar.2020.

[6] “Justiça o que é fazer a coisa certa. 24 ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2017. 347 p.

[7] Professor de filosofia política da universidade de Harvard, filósofo, conferencista, escritor.

[8]   BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil. In: CÉSPEDES, Lívia; RICHA, Fabiana Diniz (Colab). Vade Mecum. 24. Ed. São Paulo: Saraiva 2017.

[9] É aquela pela qual os direitos são definidos.

[10] É a que permite a compreensão do télos “objetivo, propósito e finalidade”, a fim de se permitir discutir sobre ele.

[11]   Justiça o que é fazer a coisa certa, 24 ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2017. 347 p.

[12] Bentham define utilidade como qualquer coisa que evite o sofrimento ou a dor e que produza a felicidade ou prazer.

[13] Disponível em: < http://www.sinj.df.gov.br/sinj/Norma/ac087b76d5f34e38a5cf3573698393f6/Decreto_40539_19_03_2020.html>. Acesso em: 23 mar. 2020.

[14] Disponível em: <  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D52025.htm>. Acesso em: 23 mar. 2020.

Como citar e referenciar este artigo:
SILVA, Samuel Santos da; RAFFAELE, Mário Saveri Liotti Duarte. O abuso da atividade econômica na venda de materiais de proteção contra Coronavírus dentro de uma diminuta análise conceitual da virtude em Aristóteles, do Utilitarismo de Bentham e Mill e a moral em Kant. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/o-abuso-da-atividade-economica-na-venda-de-materiais-de-protecao-contra-coronavirus-dentro-de-uma-diminuta-analise-conceitual-da-virtude-em-aristoteles-do-utilitarismo-de-bentham-e-mill-e-a-moral-em-k/ Acesso em: 16 abr. 2024