Direito Administrativo

Terceirização de serviço público e o novo texto constitucional

Terceirização de serviço público e o novo texto constitucional

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

A cultura da privatização, que tomou conta do País sob a enganosa bandeira da agilidade e da eficiência, vem impulsionando a terceirização de serviços públicos.

 

     A privatização, em seu sentido amplo, significa toda medida adotada pelo Estado para diminuir o seu tamanho, com vistas à agilização de suas atividades, que devem retringir-se ao desempenho de funções típicas do poder público. Ressalvamos que não há unanimidade na doutrina, quanto ao conceito de privatização que, aliás, é um conceito em evolução como assinalam os estudiosos. Mas, pode-se dizer que, em seu sentido genérico, ela abrange a desregulação, a desestatização, a desmonopolização, a concessão ou permissão de serviço público e a parceria com o setor privado, por meio de convênios ou contratos para execução de obras e serviços. Em seu sentido restrito, a privatização significa transferência de ativos ou do controle acionário de empresas estatais para o setor privado. É a modalidade adotada pela Lei nº 9.491, de 9-9-1997, que instituiu o Programa Nacional de Desburocratização.

 

     A terceirização de serviço público, tema deste breve estudo, insere-se no âmbito da privatização genérica, em sua forma de parceira com o setor privado. Implica, necessariamente, contratação de terceiros pela Administração, com observância do processo licitatório, conforme Lei nº 8.666/93. Ela não se confunde com a terceirização de mão de obra substitutiva de servidor público de que trata o § 1º do art. 18 da LRF, para efeito de computar as despesas dela decorrentes no limite global da despesa com pessoal.

 

     Os administradores públicos, por incompetência ou má vontade na condução correta e eficiente do serviço público, ou por qualquer outra razão vêm promovendo a terceirização das atividades administrativas ao arrepio das normas legais e constitucionais vigentes. Ao invés de valorizar o quadro efetivo de servidores e melhorar as condições de trabalho, vêm permitindo o sucateamento de órgãos públicos essenciais à vida administrativa do ente político, para buscar na terceirização uma forma de agilizar a execução do serviço público.

 

     Daí a freqüente confusão entre o interesse público e o interesse privado, a refletir-se na ação estatal, insubmissa ao império da legalidade, prevalecendo-se o princípio do pacta sunt servanda. É claro que os princípios de direito privado são tão importantes quanto os de direito público. O que não se pode jamais é confundir uns com os outros. O que não é admissível é essa miscelânea de princípios de um e de outro ramo do Direito, gerando uma situação perigosa, que pode redundar em confusão entre o dinheiro público e o dinheiro do administrador público, que são duas coisas bem distintas.

 

     Nas investidas da Administração contra o serviço público executado por servidor efetivo, o setor de cobrança da dívida ativa vem sendo o eleito, principalmente, pelos Municípios. A pretexto de agilizar a realização do ativo financeiro esse setor vem sendo terceirizado sob diferentes formas.

 

     Alguns Municípios fazem questão de desprezar e desaparelhar os órgãos públicos incumbidos dessa atividade essencial do Estado, que é aquela concernente à fiscalização e arrecadação de tributos por via administrativa ou judicial. É tão importante essa atividade que a efetiva arrecadação de tributos é guindada à condição de requisito essencial da responsabilidade na gestão fiscal, conforme art. 11 da Lei Complementar nº 101/2000 – LRF. Pressupõe ela a existência de aparelhamento estatal adequado para constituição prévia do crédito tributário pelo lançamento, que é vinculado e obrigatório, sob pena de responsabilidade funcional do agente administrativo fiscal (art. 142 e parágrafo único do CTN).

 

     Por falta de compreensão do que seja serviço público, ou por outra razão qualquer, os Municípios têm demonstrado uma tendência em privatizar esse setor de atividade inerente ao Poder Público.

 

     Ora tenta-se a cessão de crédito tributário a particulares, pessoas físicas ou jurídicas, como se crédito tributário fosse um bem disponível, um bem negociável no mercado. Ora tenta-se transferir o serviço de cobrança da dívida ativa aos escritórios particulares. Em alguns Municípios os serviços de elaboração de dados cadastrais dos contribuintes e de cobrança amigável são terceirizados, apesar de contar com Procuradoria-Geral do Município, organizada em carreira.

 

     Finalmente, vale a pena lembrar a derradeira tentativa dos Municípios de buscar um suposto apoio jurídico-constitucional, perante o Senado Federal, para terceirização do serviço de cobrança do crédito tributário. Trata-se de Projeto de Resolução nº 57/2003, publicado no Diário do Senado Federal, do dia 23 de outubro de 2003, que autoriza a cessão da dívida ativa dos Municípios para instituições financeiras. Segundo esse Projeto, a dívida ativa municipal poderá ser cedida por endosso-mandato à instituição financeira privada, que antecipará até 30% do valor do crédito cedido, mediante oferecimento de garantia representada pela vinculação das receitas do Fundo de Participação dos Municípios. A instituição financeira endossatária poderá promover o parcelamento desses créditos tributários cedidos.

 

     A justificativa para tal propositura legislativa, como não poderia deixar de ser, é a busca da celeridade na realização do ativo ‘através de instituições financeiras, que possuem expertise na cobrança mais célere de créditos de toda a natureza’. Só que a realidade, data máxima vênia, é bem outra. As instituições financeiras estão terceirizando os serviços de cobrança, ou por não possuírem a ‘expertise’ nesse tipo de serviço, ou porque esse serviço é deficitário. Quem pretender protestar um título vencido e não pago, por intermédio de instituição bancária, ficará sabendo da demora e das dificuldades que terá que enfrentar. Por isso, soa estranho a terceirização de um serviço para quem já está terceirizando esse serviço, ensejando uma terceirização em cascata. Não temos dúvida em identificar uma operação de crédito disfarçada.

 

     Nunca se viu tantas impropriedades jurídicas em um Projeto de Resolução com apenas sete artigos. Fere às escancaras o princípio da legalidade, invadindo esfera de atuação privativa da lei (em sentido estrito) do ente político competente; confunde bem público indisponível, inegociável e irrenunciável, com bem passível de comércio ao permitir a transferência da dívida ativa a particulares, e oferecimento do produto da repartição do ICMS em garantia; afronta a LRF ao promover uma operação de crédito mediante antecipação da receita tributária, à semelhança das AROs, mas, sem as limitações destas.

 

     Em boa hora veio à luz o preceito do art. 37, inciso XXII, introduzido pela EC nº 42/03, vazado nos seguintes termos:

 

    ‘Art. 37……………………………………..

    XXII – as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio.’

 

     Além da obediência aos princípios insertos no caput desse artigo, a administração pública direta ou indireta dos entes políticos componentes da Federação passa a dever respeito ao princípio da vinculação da administração tributária ao regime de direito público que, agora, ficou expresso, de sorte a inviabilizar qualquer tentativa de terceirização desse serviço público, sob qualquer forma ou pretexto.

 

     A referida norma foi inserida na Constituição Federal, para conferir maior eficiência na arrecadação tributária debaixo do regime de direito administrativo. No nosso entender, coloca um ponto final na terceirização do serviço público de cobrança da dívida ativa, tentada por diferentes maneiras, por vários Municípios. A norma em questão considera as administrações tributárias da União, dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios como atividades essenciais ao funcionamento do Estado, a serem exercidas por servidores de carreiras específicas. Prescreveu-lhes a aplicação de recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuação de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e informações fiscais, na forma da lei ou convênio.

 

     Com o advento dessa norma, espera-se que os Municípios abandonem o velho hábito de querer terceirizar o serviço de cobrança da dívida ativa, movidos por interesses que não atendem ao verdadeiro interesse público. Agora a vedação constitucional ficou bem clara, pois, os serviços de fiscalização, arrecadação e cobrança de tributos insere-se no âmbito da administração tributária de cada ente político, devendo ser executadas exclusivamente por servidores efetivos organizados em carreiras específicas (auditores fiscais, inspetores fiscais, agentes de rendas, procuradores etc). Ainda que venha ser aprovado o Projeto de Resolução nº 57/2003 do Senado Federal não poderá o Município, validamente, ceder mediante endosso-madato o crédito tributário espelhado na certidão de dívida ativa.

 

SP, 13.04.04

 

 

* Sócio fundador da Harada Advogados Associados.

   Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro.

   Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos.

   Conselheiro do IASP.

   Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

   kiyoshi@haradaadvogados.com.br

   www.haradaadvogados.com.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Terceirização de serviço público e o novo texto constitucional. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/terceirizacao-de-servico-publico-e-o-novo-texto-constitucional/ Acesso em: 28 mar. 2024