Direito Administrativo

Responsabilidade fiscal: aspectos pontuais

Responsabilidade fiscal: aspectos pontuais

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

A Lei de Responsabilidade Fiscal, Lei complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, contém diversos artigos que, certamente, irão acarretar grandes embates jurídicos durante os primeiros anos de sua vigência. E isso, porque ela tem o objetivo de concentrar em mãos do poder central o controle da expansão do déficit público, o que, nem sempre é possível sem arranhar os princípios federativos, bem como os direitos fundamentais, assegurados em nível de cláusula pétrea.

    

Em 9 de maio do corrente ano, o STF apreciou, em sede de medida liminar na ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelos Partidos Políticos (PC DO B, PT e PSB), vários dispositivos da LRF tendo a Corte Suprema deferido a medida cautelar, para suspender três dos dispositivos dessa lei: o § 2º do art. 12, a parte final do § 1º do art. 23 e o § 2º desse mesmo artigo (Adin 2.238-DF, Rel. Min. Ilmar Galvão).

    

Foi o suficiente para gerar inquietações no seio do governo. Algumas autoridades demonstraram preocupação com o que chamaram de flexibilização da Lei de Responsabilidade Fiscal. A mídia deu grande destaque à matéria com manchetes: STF derruba princípios da Lei Fiscal e abre brecha para gasto; Ameaça à Lei Fiscal divide opiniões no governo etc. Nada mais equivocado. Tais declarações, feitas por agoureiros, demonstram o desconhecimento do direito como um todo. A Corte Suprema limitou-se a cumprir sua missão constitucional de retirar do mundo jurídico dispositivos atentatórios às normas constitucionais. Não flexibilizou coisa alguma. Isso é coisa das Cortes de Contas, que sempre proferiram e continuam proferindo decisões políticas, porque não passam de órgãos políticos. Os Tribunais de Contas não integram a estrutura do Poder Judiciário, podendo suas decisões serem revistas pelo Judiciário, sempre que afrontarem as formalidades da lei.

    

O objetivo deste artigo é o de analisar os dispositivos atingidos pela decisão plenária do Excelso Pretório Nacional, evitando interpretações literais, que acabam conduzindo às conclusões equivocadas que, por sua vez, acabam gerando anúncios de mau agouro.

    

O primeiro dispositivo atingido foi o § 2º do art. 12. Convém transcrever o caput e parágrafos para melhor compreensão da matéria.

 

 

Art. 12 As previsões de receita observarão as normas técnicas e legais, considerarão os efeitos das alterações na legislação, da variação do índice de preços, do crescimento econômico ou de qualquer outro fator relevante e serão acompanhadas de demonstrativo de sua evolução nos últimos três anos, da projeção para os dois seguintes àquele a que se referirem, e da metodologia de cálculo e premissas utilizadas.

§ 1º Reestimativa de receita por parte do Poder Legislativo só será admitida se comprovado erro ou comissão de ordem técnica ou legal.

§ 2º O montante previsto para as receitas de operações de crédito não poderá ser superior das despesas de capital constantes do projeto de lei orçamentária.

 

    

Como se vê, o dispositivo do caput versa sobre a forma como devem ser estimadas as receitas públicas, para efeito de elaboração da proposta orçamentária anual. As estimativas de receitas devem considerar os efeitos das alterações na legislação tributária, a variação de índice de preços e o crescimento da economia ou qualquer outro fator relevante. De fato, as modificações da legislação tributária, com a instituição de isenções, por exemplo, refletirá na realização da receita, assim como, o crescimento da economia e a variação do índice de preços, à medida em que a maioria dos tributos são ad valorem. Além disso, as estimativas de receitas devem estar acompanhadas de demonstrativos de sua evolução nos últimos três anos, da projeção dos dois seguintes a que se referirem, assim como, da metodologia de cálculo, tudo os moldes do que já prescreviam os artigos 29 e 30 da Lei nº 4.320/64.

    

Exatamente por que a estimativa de receitas deve obedecer a critérios e métodos preestabelecidos em lei, o § 1º somente admite a sua reestimativa, pelo Poder Legislativo, se comprovado erro ou omissão de ordem técnica ou legal. Com isso o poder de emendas dos parlamentares, com vistas ao aumento de despesas para atendimento de seus representados, fica bastante limitado.

    

O § 2º, considerado inconstitucional pelo STF, estabelece a proibição de estimar as receitas provenientes de operações de crédito em montante superior àquele projetado para as despesas de capital. Em outras palavras, a estimativa de receitas decorrentes de compromissos financeiros assumidos em razão de mútuo, abertura de crédito, emissão de títulos e aceite de título e outros meios de obtenção de recursos financeiros, definidos no inciso III do art. 29, não pode superar o montante das despesas destinadas a gerar um acréscimo ou uma mutação patrimonial, como as de investimentos, as de inversões financeiras e as de transferências de capital (§§ 4º, 5º e 6º do art. 12 da Lei nº 4.320/64, respectivamente). Esse parágrafo visa atender o disposto no inciso III do art. 167(1) da Constituição Federal, que veda operações de crédito em montante superior ao das despesas de capital, a fim de evitar o desequilíbrio orçamentário, ressalvadas aquelas autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais, com finalidade precisa, aprovadas pelo Poder Legislativo, por maioria absoluta.

    

A doutrina batizou esse dispositivo de “regra de ouro” por coibir o emprego de recursos financeiros, obtidos com operações de crédito, no pagamento de despesas correntes, dentre as quais, as de pessoal(2), ocasionando redução no patrimônio líquido do ente político. Entretanto a “regra de ouro” está no intocado art. 167, III da CF, cujo desatendimento impossibilita qualquer ente político de contratar operações de crédito (art. 32, § 1º, V da LRF).

    

É importante lembrar que esse parágrafo 2º não deve ser interpretado isoladamente, mas, no contexto da ordem jurídica como um todo. O dispositivo em questão, na verdade, não veda a realização de operações de crédito em montante superior ao das despesas de capital, desde que autorizadas pelo Poder Legislativo, por maioria absoluta, mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa. Nenhuma lei infraconstitucional poderia suprimir essa ressalva. E a LRF, ao omiti-la, certamente, não a suprimiu. O art. 12 cuida de estimativa de receita para elaboração do projeto de Lei Orçamentária Anual, tanto é que seu § 1º refere-se a reestimativa de receitas pelo Legislativo, nas duas hipóteses aí apontadas. Em outras palavras, em termos de propositura legislativa da LOA, não poderá conter – e nem há necessidade de conter – previsão de montante de operações de crédito em valor superior ao das despesas de capital. No curso da execução orçamentária, se necessário for, para cumprimento de determinada finalidade, poderá ocorrer abertura de créditos suplementares ou especiais, nos termos dos artigos 42 e 43 da Lei nº 4.320/64, mediante realização de operações de crédito aprovadas por maioria absoluta dos membros da Casa Legislativa. É preciso distinguir o plano da proposta legislativa, do plano da execução da Lei Orçamentária Anual.

    

Entretanto, esse § 2º foi declarado inconstitucional pelo STF, aparentemente, por não conter a ressalva constitucional. Salvo melhor juízo, entendemos que cabia, no caso, a aplicação do princípio da interpretação conforme a Constituição, pois, não haveria qualquer atentado ao sentido unívoco dado pelo Poder Legislativo, hipótese em que, a aplicação desse princípio não seria possível, consoante ensinamentos do eminente Ministro Moreira Alves(3). O mesmo culto Ministro preleciona que cabe a aplicação do princípio da interpretação conforme a Constituição, que se situa no âmbito do controle da constitucionalidade, quando a norma impugnada admite, dentre as várias interpretações possíveis, uma que a compatibiliza com a Carta Magna, e não quando o sentido da norma é unívoco(4). Era o caso deste dispositivo da LRF, objeto de exame.

 

    

Os outros dois dispositivos, suspensos pela medida cautelar deferida pela Corte Suprema, são os §§ 1º e 2º do art. 23 que assim prescrevem:

 

Art. 23 Se a despesa total com pessoal, do Poder ou órgão referido no art. 20, ultrapassar os limites definidos no mesmo artigo, sem prejuízo das medidas previstas no art. 22, o percentual excedente terá de ser eliminado nos dois quadrimestres seguintes, sendo pelo menos um terço no primeiro, adotando-se, entre outras, as providências nos §§ 3º e 4º do art. 169 da Constituição.

§ 1º No caso do inciso I do § 3º do art. 169(5) da Constituição, o objetivo poderá ser alcançado tanto pela extinção de cargos e funções quanto pela redução dos valores a eles atribuídos.

§ 2º É facultada a redução temporária da jornada de trabalho com adequação dos vencimentos à nova carga horária(6).

 

    

Ultrapassado o limite legal de despesa com pessoal, o Poder ou órgão ministerial referido no art. 20 deverá eliminar o percentual excedente, no prazo de 8 meses(7), sem prejuízo das medidas previstas no art. 22. No primeiro quadrimestre deverá ser eliminado, pelo menos, um terço do excedente.

    

Na verdade as providências para a redução de despesas de pessoal já estão indicadas nos § § 3º e 4º, do art. 169 da CF, transcritos no rodapé. Assim, poderá ocorrer redução das despesas em pelo menos 20% com cargos em comissão e funções de confiança e exoneração de servidores não estáveis (§ 3º do art. 169 da CF). Os cargos em comissão e função de confiança introduzidos pelo Regime Militar, persistem até hoje e constituem um verdadeiro cancro no seio do funcionalismo. Quebram o princípio basilar da hierarquia funcional à medida em que pessoas inexperientes e incapazes são guindadas aos postos mais relevantes da Administração Pública, através de apadrinhamentos de políticos que passam ser os únicos chefes de servidores protegidos.

    

Se as duas medidas retromencionadas não forem suficientes, poderá haver exoneração de servidor estável desde que ato normativo motivado de cada um dos Poderes especifique a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa objeto de redução do pessoal (§ 4º do art. 169 da CF). Essa exigência constitucional visa tornar objetivo o critério de exoneração de servidor estável, afastando ou reduzindo a possibilidade de perseguições políticas. O servidor estável, atingido pela medida de contenção de despesa de pessoal, fará jus a uma indenização correspondente a um mês de remuneração por ano de serviço prestado (§ 5º do art. 169 da CF). Como se sabe, servidor estável é aquele que, nos termos do art. 41 da CF, foi nomeado para o cargo de provimento efetivo, em virtude de concurso público, e esteja no exercício de suas atribuições por mais de 3 anos.

    

O § 1º, cuja parte final foi atingido pela liminar da Corte Suprema, prescreve que na hipótese de ocupantes de cargos em comissão ou de funções de confiança é facultada a sua extinção ou a redução de valores a eles atribuídos. Esses cargos em comissão são de livre nomeação e exoneração ao teor do inciso II in fine do art. 37 da CF, porém ao nosso ver, os servidores nomeados estão sob a proteção do princípio da irredutibilidade de vencimentos. De fato, o inciso XV do art. 37 da CF refere-se a irredutibilidade de vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos, sem distinguir o exercente de cargo efetivo do exercente de cargo em comissão. Daí a inconstitucionalidade da parte final desse dispositivo, declarada pelo STF, por ferir o princípio constitucional da irredutibilidade de subsídio e vencimentos. Outrossim, a Constituição não contempla a redução de vencimentos no elenco de medidas destinadas a conter os gastos com despesas de pessoal.

    

O § 2º, igualmente, atingido pela decisão da Corte Suprema, aventa a possibilidade de redução temporária da jornada de trabalho com a adequação dos vencimentos à nova carga horária. A redução da jornada de trabalho só será possível mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho. Realmente, a Constituição Federal, pelo § 3º(8) de seu art. 39 determinou a aplicação do disposto no inciso XIII de seu art. 7º aos servidores ocupantes de cargos públicos. Entretanto, texto constitucional autoriza apenas a redução da jornada de trabalho, além da compensação de horários, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho. Não permite a redução proporcional de vencimentos que, mesmo nessa hipótese, continuam sendo protegidos pela cláusula pétrea da irredutibilidade. Daí a inconstitucionalidade desse parágrafo decretada pelo STF.

 

    

Como se vê, analisada a questão com a devida serenidade e dentro do prisma rigorosamente jurídico, a decisão da Corte Suprema não pode ser tida como medida de flexibilização da Lei Fiscal. Muito mais preocupante são as decisões proferidas por diferentes Tribunais de Contas existentes no País.

 

 

(1) São vedados: ….III – a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta.

(2) As despesas de pessoal estão sujeitas aos limites global e por Poder (arts. 19 e 20 da LRF).

(3) Representação de inconstitucionalidade nº 1.417-7, Rel. Min. Moreira Alves, Lex JSTF 117/224).

(4) ADIMC 1344-ES, Rel. Min. Moreira Alves, DJU, 19-4-96, p. 12.212).

(5) Art. 169. A despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar.

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§ 3º Para o cumprimento dos limites estabelecidos com base neste artigo, durante o prazo fixado na lei complementar referida no caput, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios adotarão as seguintes providências:

     

I – redução em pelo menos vinte por cento das despesas com cargos em comissão e funções de confiança;

     

II – exoneração dos servidores não estáveis.

     

§ 4º Se as medidas com base no parágrafo anterior não forem suficientes para assegurar o cumprimento da determinação da lei complementar referida neste artigo, o servidor estável poderá perder o cargo, desde que ato normativo motivado de cada um dos Poderes especifique a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa objeto da redução de pessoal.

(6) Constituição Federal – Ver art. 7º, VI (irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo).

(7) Esse prazo será dobrado na hipótese de crescimento real baixo ou negativo do Produto Interno Bruto nacional, regional ou estadual por um período igual ou superior a um ano.

(8) Art. 39 – A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão…………

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§ 3º Aplicam-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII…………

     

Art. 7º – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

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XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho.

 

 

 

SP, 12.05.02.

 

 

* Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Presidente Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Responsabilidade fiscal: aspectos pontuais. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/responsabilidade-fiscal-aspectos-pontuais/ Acesso em: 20 abr. 2024