Direito Administrativo

O novo teto salarial dos servidores públicos e questões controvertidas

O novo teto salarial dos servidores públicos e questões controvertidas

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

Muitas dúvidas tem causado a Emenda Constitucional nº 19, de 4 de junho de 1998, que introduziu alterações aos dispositivos constitucionais pertinentes à remuneração dos servidores públicos.

    

Alguns entendem que o novo teto salarial – subsídio do Ministro do STF – é auto aplicável, enquanto outros entendem que só poderia aquele teto vigorar após a lei de iniciativa conjunta dos presidentes dos três Poderes da República. A questão não se resume, ao nosso ver, apenas em se saber se o novo teto está ou não em vigor. Uma coisa é fixar o teto, matéria constitucional; outra coisa bem diversa é estabelecer o valor desse teto, matéria que se insere no âmbito de competência do legislador infraconstitucional.

    

Para melhor exame da questão, inclusive, de outros aspectos que a inovação constitucional suscita nada melhor do que a reprodução dos textos anteriores e posteriores à Emenda nº 19/98.

    

Textos anteriores à Emenda nº 19/98:

 

Art. 37, inciso XI:

“XI – a lei fixará o limite máximo e a relação de valores entre a maior e a menor remuneração dos servidores públicos, observados, como limites máximos e no âmbito dos respectivos Poderes, os valores percebidos como remuneração, em espécie, a qualquer título, por membros do Congresso Nacional, Ministros de Estado e Ministros do Supremo Federal e seus correspondentes nos Estados, no Distrito Federal e nos Territórios, e, nos Municípios, os valores percebidos como remuneração, em espécie, pelo Prefeito;”

 

Art. 39, § 1o:

“§ 1o – A lei assegurará, aos servidores da Administração Direta, isonomia de vencimentos para cargos de atribuições iguais ou assemelhados do mesmo Poder ou entre servidores dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ressalvadas as vantagens de caráter individual e as relativas à natureza ou ao local de trabalho.

 

Art. 93, inciso V:

“V – os vencimentos dos magistrados serão fixados com diferença não superior a 10% (dez por cento) de uma para outra das categorias da carreira, não podendo, a título nenhum, exceder os dos Ministros do Supremo Tribunal Federal;”

 

Art. 17 do ADCT:

“Art. 17 – Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título”.

 

    

Textos com a redação conferida pela Emenda nº 19/98:

 

Art. 37, incisos X, XI e XII:

“X – a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4o do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices;”

 

“XI – a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal;”

 

“XII – os vencimentos dos cargos o Poder Legislativo e do Poder Judiciário não poderão ser superiores aos pagos pelo Poder Executivo;”

 

Art. 39, §§§ 4o, 5o e 8o:

“Art. 39 – A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes”.

 

“§ 4o – O membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI.”

 

“§ 5o – Lei da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios poderá estabelecer a relação entre a maior e a menor remuneração dos servidores públicos, obedecidos, em qualquer caso, o disposto no art. 37, XI;”

 

“§ 8o – A remuneração dos servidores públicos organizados em carreira poderá ser fixada nos termos do § 4o”.

 

Art. 93, V:

“V – o subsídio dos Ministros dos Tribunais Superiores corresponderá a 95% (noventa e cinco por cento) do subsídio mensal fixado para os Ministros do Supremo Tribunal Federal e os subsídios dos demais magistrados serão fixados em lei e escalonados, em nível federal e estadual, conforme as respectivas categorias da estrutura judiciária nacional, não podendo a diferença entre uma e outra ser superior a 10% (dez por cento) do subsídio mensal dos Ministros dos Tribunais Superiores, obedecido, em qualquer caso, o disposto nos arts. 37, XI, e 39, § 4o;”

 

Art. 29 da Emenda nº 19/98:

“Art. 29 – Os subsídios, vencimentos, remuneração, proventos da aposentadoria e pensões e quaisquer outras espécies remuneratórias adequar-se-ão, a partir da promulgação desta Emenda, aos limites decorrentes da Constituição Federal, não se admitindo a percepção de excesso a qualquer título”.

 

Como era no texto original

 

    

Antes da Emenda nº 19/98 havia vários tetos de vencimentos ou de remunerações, não importa a denominação; o que é importante é a noção de estipêndio periódico pago pelo Estado, representando uma contraprestação pelos serviços prestados por seus servidores, no exercício do cargo ou da função.

    

Assim, existiam três tetos no âmbito dos respectivos Poderes. No Legislativo, os valores percebidos como remuneração, em espécie, a qualquer título, pelos deputados e senadores; no Executivo, os percebidos pelos Ministros de Estado; no Judiciário, os vencimentos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Estabelecia, ainda, aplicação de valores correspondentes nos Estados e no Distrito Federal, bem assim, os valores percebidos como remuneração, em espécie, pelo Prefeito, como sendo o limite de vencimento dos servidores públicos municipais.

    

E o art. 17 do ADCT, legitimado pela soberania da Assembléia Nacional Constituinte, extrapassou o princípio do direito adquirido determinando a redução imediata dos vencimentos, das vantagens, dos adicionais ou dos proventos que estivessem sendo percebidos acima dos limites retro mencionados. Lembrem-se de que, quando entrou em vigor esse preceito constitucional, já exisistiam valores certos e determinados que foram tomados como tetos de vencimentos.

    

Entretanto, aqueles tetos constitucionais, apesar da clara inclusão de remuneração em espécie “a qualquer título”, nunca foram observados na prática. Todos os tribunais do País passaram a determinar a exclusão do teto salarial das verbas de natureza pessoal, pela aplicação conjugada do inciso XI do art. 37 e do § 1o do art. 39 da CF. Esse entendimento restou pacificado no Supremo Tribunal Federal.

    

Outrossim, foi considerada não recepcionada pela nova ordem constitucional implantada, em 5 de outubro de 1998, a legislação salarial que não tivesse estabelecido escala de valores entre a maior e a menor remuneração, como determinava o inciso XI do art. 37. Era o caso da Lei nº 10.430/88 do Município de São Paulo que, além de adotar como teto salarial um valor que nada tinha a ver com a remuneração percebida pelo Prefeito, não continha a aludida relação de valores. Essa relação de valores, com referência aos membros da magistratura, deveria observar diferença não superior a 10% (dez por cento) de uma para outra das categorias da carreira (art. 93, V da CF).

    

Como se vê, no regime anterior, existiam vários tetos. E a imposição da fixação não só do limite máximo, como também, da relação entre maior e menor remuneração conduzia necessariamente à elaboração, por lei, de escalas de vencimentos partindo do teto salarial. É a conclusão lógica, que decorre da simples leitura do que estava escrito no art. 37, XI da CF. Isso, agora, não existe, pelo menos para a generalidade dos servidores públicos como veremos mais adiante.

 

Como é no regime atual

 

    

Pelo regime instituído pela Emenda nº 19/98 o teto salarial passa a ser o subsídio percebido pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal. E para evitar confusão com o antigo subsídio previsto na Constituição Federal de 1967/69 para presidente da República e parlamentares, contendo uma parte fixa e uma outra parte variável, o novo texto constitucional referiu-se expressamente ao subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio etc. (§ 4o do art. 39). A parcela única paga aos Ministros do STF constitui o teto salarial. Esse subsídio, que passa a ser o teto salarial para todo o funcionalismo público, será fixado por lei de iniciativa conjunta dos presidentes da República, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal (art. 48, XV da CF). A Carta Magna já estabeleceu o teto salarial dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça em 95% do subsídio pago aos Ministros da Corte Suprema (art. 93, V da CF). Os demais magistrados terão seus subsídios fixados por lei (art. 37, X da CF) de iniciativa dos Tribunais Superiores e dos Tribunais de Justiça (art. 96, II, b, da CF), observada a diferença entre uma e outra categoria da carreira judiciária em percentual não superior a 10% e nem inferior a 5% (art. 93, V da CF). A Lei nº 9.655, de 2 de junho de 1998, que concede abono retoativo a 1º de janeiro de 1998 aos membros do Poder Judiciário, apesar de plenamente recepcionado pelo texto constitucional, é de difícil aplicação. De fato, ela prevê a concessão de abono correspondente à diferença entre a remuneração mensal atual de cada magistrado e o valor do subsídio que vier a ser fixado pela lei de iniciativa dos três Poderes. Se não se sabe o valor desse subsídio torna-se dificil encontrar a aludida diferença, a menos que se faça o cálculo tomando por base os atual vencimento da maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no pressuposto de que o subsídio a ser fixado não poderá ser inferior a ele. Foi o que fez o presidente do Superior Tribunal de Justiça. O descumprimento do disposto no art. 48, XV da CF acabou por frustrar a aplicação plena da Lei nº 9.655/98, bem como, vem dificultando a implantação de nova política salarial no âmbito do funcionalismo público em geral.

    

Outrossim, há um equívoco na invocação do art. 29 da Emenda nº 19/98 que vem sendo feita pelos articulistas, para sustentar elevação automática de vencimentos. Muito ao contrário, aquela norma de caráter transitório, correspondente ao art. 17 do ADCT, determina redução imediata dos vencimentos percebidos acima do teto salarial, que passou a ser o subsídio mensal dos Ministros da Corte Suprema.

    

Se se entender que o atual vencimento dos Ministros é diferente de subsídio de que trata o novo texto constitucional há que se aguardar a sua definição por lei de iniciativa conjunta, para aplicação de eventual redutor. Uma coisa é certa: a Constituição limita-se a estabelecer o teto salarial, sendo que a fixação de salários, vencimentos ou subsídios é tarefa do legislador ordinário, porque se constitui em matéria legal, e não constitucional. A Constituição fixa o teto e a lei estabelece o valor desse teto. Somente nos casos expressos no Texto Magno (art. 49, VII e VIII) cabe ao Congresso Nacional, por meio de Resolução, fixar os subsídios dos parlamentares, do presidente e do vice-presidente da República e dos Ministros de Estado, observado o teto salarial.

 

Dificuldades

 

    

O novo regime, ao aventar o critério exclusivo de remuneração por subsídio fixo para todos os membros de Poder trará sérias dificuldades, porque os magistrados são organizados em carreira, ao contrário de deputados e senadores, por exemplo. Isso levaria à desconsideração do tempo de serviço de cada um, da acumulação de funções como o exercício da presidência, participação em outro tribunal etc., tudo conspirando contra o princípio da isonomia. Outrossim, como o art. 37, XV da CF manda respeitar o princípio da irredutibilidade de vencimentos/subsídios com as ressalvas aí previstas, forçoso é concluir que na fixação do subsídio-teto, deve ser levado em conta todas as vantagens atualmente percebidas pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Qualquer outra interpretação chocaria com o princípio da isonomia, pois os servidores públicos em geral, podem manter as atuais vantagens pessoais sujeitando-se apenas aos termos do art. 37, X e XI da CF. Nesse particular a reforma administrativa representou um tiro no pé. A solução seria a lei fixar um subsídio-teto, ressalvando a superação desse limite para os Ministros da Corte Suprema que, em razão de vantagens pessoais, estiverem percebendo acima do novo teto salarial. A idéia viria de encontro aos princípios constitucionais do direito adquirido e da igualdade.

    

Os demais servidores públicos podem continuar regidos pelo sistema atual, com o vencimento padrão escalonado, fixando a relação entre a maior e a menor remuneração, e conservando as diferentes vantagens pessoais e outras, contanto que respeitado o novo teto salarial (art. 37, XI da CF). A relação entre a maior e a menor remuneração que antes era impositiva, agora, passou a ser facultativa (art. 39, § 5o da CF). A lei da entidade política competente poderá, em relação aos servidores públicos organizados em carreira, adotar o regime de subsídio fixado em parcela única (art. 39, § 8o da CF), hipótese em que deverá incluir no aludido subsídio todas as vantagens até então percebidas, respeitado o teto salarial. Se adotado esse regime, obviamente, deverá contemplar diferentes subsídios para os diversos cargos ou funções da carreira, sem o que não seria possível implementar a “promoção na carreira” a que alude o § 2o do art. 39 da CF. Nesse regime, mesmo considerando a revisão anual prevista no inciso X do art. 37, haverá risco de achatamento salarial, pois o maior subsídio poderá ser fixado bem aquém do teto salarial. Nada há na Constituição que impeça isso; só não poderia denominar de teto salarial a esse maior subsídio.

    

Muito embora na dicção do § 4o do art. 39 da CF o subsídio configure parcela única, vedado qualquer acréscimo, seja a que título for, a verdade é que o § 3o do mesmo artigo determina a aplicação de inúmeros incisos do art. 7o da CF, concernentes ao 13o salário, ao adicional noturno, ao salário família, ao adicional de férias etc., etc. Forçoso é concluir, portanto, que a parcela única não pode ser verdadeiramente única, da mesma forma que o regime jurídico único dos servidores públicos, que estava no art. 39 da CF, nunca pôde ser observado pelas diferentes Administrações.

    

Por derradeiro, em relação aos aposentados e pensionistas inocorreu a discriminação que vinha sendo apontada e defendida por certos setores do governo. Os §§ 4o e 5o do art. 40 da CF assegura a revisão dos proventos e das pensões, na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores ativos, com extensão de todos e quaisquer benfícios ou vantagens concedidos àqueles.

    

Positivamente, a Emenda nº 19/98 não é das melhores. Eliminou a polêmica em torno do regime jurídico único e fechou, aparentemente, as portas que permitiam a percepção de vencimentos acima do teto salarial, porém, criou obstáculos difíceis de serem contornados. Ao impor subsídio em parcela única para todos os integrantes de Poder esqueceu-se de que os magistrados são organizados em carreira, ao longo da qual acumulam funções das mais diversas. Não haveria um atentado ao princípio da isonomia remunerar, por exemplo, todos os integrantes da Corte Suprema com o mesmo subsídio? Por outro lado, seria razoável fixar remunerações diferenciadas para, ao depois, aplicar o redutor visando sua adequação ao subsídio-teto? Mais, esse subsídio-teto, face ao princípio da irredutibilidade que ficou preservado, poderia ser fixado em quantia menor que a remuneração percebida por um ou mais Ministros do STF? Esclareça-se, desde logo, que a aplicação do disposto no art. 29 da Emenda depende de prévia fixação, por lei, do valor do subsídio-teto, e a lei deve obediência ao princípio da irredutibilidade de vencimentos.

    

Ademais, como compatibilizar o subsídio em parcela única com a ressalva dos direitos previstos nos diferentes incisos do art. 7o da CF? A faculdade de adotar o regime de subsídio, prevista no § 8o do art. 39 da CF, ficaria condicionada à supressão dos direitos previstos nos diversos incisos daquele art. 7o, que a Emenda nº 19/98 preservou? Tudo indica que não.

    

Enfim, cumpre à jurisprudência, com o auxílio da doutrina, encontrar alternativas que resguardem os princípios da irredutibilidade salarial, do direito adquirido e da isonomia.

 

SP, 23.10.98

 

 

* Advogado e Professor de Direito Tributário, Financeiro e Administrativo, Diretor da Escola Paulista de Advocacia e Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica da Prefeitura de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. O novo teto salarial dos servidores públicos e questões controvertidas. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/o-novo-teto-salarial-dos-servidores-publicos-e-questoes-controvertidas/ Acesso em: 29 mar. 2024