Conhecimento

A crise na Educação. Um diálogo improvável entre Hannah Arendt e Mário Sérgio Cortella

INTRODUÇÃO

Seria impossível dizer que os professores, Hannah Arendt e Mario Sergio Cortella tenham, em verdade, se encontrado pessoalmente? Absolutamente que não. Seria improvável? Evidente. Enquanto que Hannah Arendt, nascida em outubro de 1906, sobrevivente do campo de concentração de Gurs, na França, viveu parte de sua vida na Europa, e parte nos Estados Unidos da América até dezembro de 1975, data de seu falecimento, o professor Cortella, nascido no mês de março do ano de 1954, em Londrina/Paraná, conclui sua graduação no ano do falecimento de Hannah Arendt, ou seja, em 1975.

Com um legado de trabalho e pensamento que fora deixado para as gerações pela pensadora Alemã, que continua vivo e em pauta. E por sua vez, o trabalho do professor Cortella, que continua a construir o seu legado para a sociedade. A despeito do improvável encontro entre os mestres num plano físico, no plano intelectual é completamente possível.

Assim, com uma boa dose de imaginação, baseado na obra “Entre o passado e o futuro” de Hannah Arendt, e a obra “Família, Urgências e Turbulências”, de Mario Sergio Cortella, com intervenções ao longo dos textos é feito o diálogo entre os professores.

Um diálogo real, num plano imaginário e atemporal, tanto necessário quanto altamente relevante aos nossos dias.

1. CRISE NA EDUCAÇÃO.

Hannah Arendt: Certamente não é preciso grande imaginação para detectar os perigos de um declínio sempre crescente nos padrões elementares na totalidade do sistema escolar, e a seriedade do problema tem sido sublinhada apropriadamente pelos inúmeros esforços baldados das autoridades educacionais para deter a maré. Apesar disso, se compararmos essa crise na educação com as experiências políticas de outros países no século XX, com a agitação revolucionária que se sucedeu à Primeira Guerra Mundial, com os campos de concentração e de extermínio, ou mesmo com o profundo mal-estar que, não obstante as aparências contrárias de propriedade, se espalhou por toda Europa a partir do término da Segunda Guerra Mundial, é um tanto difícil dar a uma crise na educação a seriedade devida.

Mediador: Quando se é sabido que a Professora Hannah Arendt publicou o texto acima no ano de 1954, ou seja, menos de 10 anos do fim da Segunda Grande Guerra, fica compreensível a menção quanto a dificuldade de se dar a educação a seriedade que lhe é devida.

Os temas como guerra e campos de extermínio aparecem recorrentemente no conjunto da professora. Para quem viu com os seus próprios olhos, não poderia ser diferente. Entre os anos de 1939 a 1945 cerca de 70 milhões de vidas foram ceifadas. Tragédia sem qualquer precedente.

Portanto, esclarecido seu comentário quando trata da não devida atenção educação.

Veja o senhor professor Cortella. À época da Professora Hannah Arendt, fora tomada a decisão de pacificação dos abalados ânimos recém saídos de uma grande mundial. Uma verdadeira questão de prioridade.

Mario Sergio Cortella: Eu sempre lembro que a palavra “prioridade” não tem “s” no final. Ela é sempre no singular.

Mediador: Saímos de uma obra do ano de 1954, passamos pelo ano de 2017, ano de publicação da obra “Família, urgências e turbulências”; chegamos no ano de 2019, ou seja, um intervalo de 65 anos. Naturalmente muita coisa mudou nessas passadas décadas, e uma delas, é a hipertrofia das cidades.

Mario Sergio Cortella: Mais da metade da população brasileira vive em dez regiões metropolitanas. Um dos efeitos da hipertrofia das cidades é a demanda cada vez maior do tempo de deslocamento. Com isso, a proximidade física entre as pessoas da família rareou. A condição de morar perto de um parente, ter alguém próximo para deixar o filho, deu lugar ao desespero. Atualmente, uma parte dos pais e mães encontra dificuldade em criar os filhos porque não teve como aprender a fazê-lo. Nas gerações anteriores, como havia um convívio mais próximo, várias meninas e alguns meninos, aos 10, 12 anos, aprenderam a lidar com criança ajudando a tomar conta do primo, estando junto com as tias, com a avó. Mais tarde, ao se tornarem pais e mães, já tinham várias noções do que era cuidar de uma criança. As gerações anteriores foram beneficiadas por um ambiente pedagógico não formal, um espaço de aprendizagem que era a convivência familiar.

Hoje, a dinâmica das cidades alterou essas relações. Um exemplo: a minha família se mudou para São Paulo em 1967. Há meio século, meu pai, que era diretor de banco, trabalhava na Avenida Paulista. A gente morava na Avenida Angélica, próximo ao parque Buenos Aires. Meu pai saía do banco, na esquina da Rua Itupeva, ao meio-dia. Pegava um ônibus na Paulista às 12h05. Dez minutos depois, ele estava no parque Buenos Aires. Meio-dia e meia sentávamos todos à mesa. Almoçávamos e jantávamos juntos todos os dias. Como não existia o micro-ondas, a comida tinha de ser esquentada uma única vez. Às 13h, terminávamos o almoço. Nessa meia hora se dava risada, se levava bronca. E meu pai todo dia tomava o jornal, no sentido de lição, de mim e do meu irmão. Ao sair de casa pela manhã, ele dizia: “Quando eu chegar, vou tomar o jornal de vocês”. Terminado o almoço, ele perguntava: “O que você leu hoje? O que está acontecendo na política? Nós conversávamos até por volta de 13h20, tempo que servia para afeto e para a disciplina. De 13h20 a 13h40, ele dava uma cochilada no sofá. Despertava, tomava o ônibus e às 14h estava de volta ao banco.

Nessa época, a cidade de São Paulo tinha 1,2 milhão de habitantes. Hoje, são mais de 11 milhões. Para cumprir esse mesmo trajeto, gasta-se pelo menos uma hora. Esse deslocamento nas grandes cidades, em que são consumidas de duas a três horas no dia a dia, reduz a possibilidade de convivência. E, quando chega em casa, a pessoa está tão estafada pela perda de tempo no transporte, pelas disputas no local de trabalho, pelas demandas profissionais, que não tem mais paciência para lidar com os seus.

Mediador: Mas o tempo não mudou. O tempo é o tempo. Impassível. O que tem de mudar, portanto, é nossa postura diante das cobranças desses dias.

Mario Sergio Cortella: Os pais precisam eleger qual é a prioridade. Mais uma vez, “prioridade” não tem “s” no final. Ela é sempre no singular. Se o casal tem filhos, fez a escolha. Então é preciso cuidar, e isso toma tempo, demanda reeleger a prioridade. Prioridade não é aquela que exige abrir mão do tempo de trabalho; se a pessoa está lutando para sobreviver, isso é uma impossibilidade. Priorizar significa olhar as outras dimensões da vida e escolher de qual vai abdicar.

O pai ou a mãe alega não ter uma hora por dia para dedicar ao filho. E se o menino cair no mundo das drogas, quanto tempo será necessário dedicar para libertá-lo dessa condição? Por isso, a grande pergunta é “qual a sua prioridade?”. Se a família for a prioridade, será preciso rediscutir as necessidades da vida material e reorganizar os modos de uso do tempo.

Mediador: Queremos crer que as famílias estimam e buscam o melhor para os seus e para uma sociedade melhor.

Mario Sergio Cortella: Ora, uma das maneiras que pais e mães encontram para cuidar dos filhos é mantê-los a maior parte do tempo cheios de atividades. Muitas crianças tem agendas repletas de atividades para preencher o tempo em que os pais passam trabalhando.

Mediador: Seria concluir, portanto, que todas as crianças com as agendas repletas de atividades estão nessa condição em razão de seus pais passarem todo esse tempo trabalhando? Ou porque, em verdade, numa hipótese de “tempo livre” os pais dessa nova geração não mais sabem o que fazer com seus filhos?

Mario Sergio Cortella: Há uma diferença entre uma criança ocupada de modo contínuo porque aquelas atividades contribuem para a boa formação dela e outra que é mantida ocupara porque, se houver um tempo livre, o adulto não saberá o que fazer com ela.

Mediador: Professor, não seria essa uma forma de terceirização?

Mario Sergio Cortella: A terceirização é movida por necessidade de cuidado e proteção ou porque não se quer usar parte do tempo para lidar com a criança? A idéia da terceirização em si não é negativa. Afinal, nós almoçamos fora. Eu não tenho vaca em casa, então compro leite já retirado. Ocupar a criança de modo contínuo pode ter como motivação a possibilidade de ela ficar protegida. Nesse caso, a terceirização é um mecanismo de cuidado.

Há escolas de educação infantil com atendimento de 12 horas (e precisam tê-lo). Há crianças que vão ficar sem os pais das 7h às 19h. Estar numa escola, que tem outras crianças, comida, espaço para lazer, atividades variadas, é maravilhoso. Mas não o é se o pai e a mãe deixam lá porque não querem estar com a criança ou porque não querem que ela fique sem algum tipo de assistência. Em espanhol, existe a expressão “guardería”, largamente usada na Argentina, que significa “creche”. Muitos pais procuram guarderías variadas, no sentido de encontrar lugares onde a criança é deixada e alguém toma conta.

Costumo sempre lembrar que a função da escola é a escolarização: o ensino, a socialização, a construção de cidadania, a experiência científica e a responsabilidade social. Mas é a família que faz a educação. A escolarização é apenas uma parte do processo de educar, não a sua totalidade. Já existem personal trainer, personal stylist. Agora querem personal father, personal mother?

Hannah Arendt: Os pais humanos, contudo, não apenas trouxeram seus filhos à vida mediante a concepção e o nascimento, mas simultaneamente os introduziram em um mundo. Eles assumem na educação a responsabilidade, ao mesmo tempo, pela vida e desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo.

Mediador: Essa, professora, é uma reflexão que vai muito além do senso comum. É, também, de uma beleza genial, e que traz consigo muita responsabilidade.

Hannah Arendt: Essas duas responsabilidades (pela vida e desenvolvimento da criança e pela continuidade do mundo) de modo algum coincidem; com efeito podem entrar em mútuo conflito. A responsabilidade pelo desenvolvimento da criança volta-se em certo sentido contra o mundo: a criança requer cuidado e proteção especiais para que nada de destrutivo lhe aconteça de parte do mundo. Porém também o mundo necessita de proteção, para que não seja derrubado e destruído pelo assédio do novo que irrompe sobre ele a cada nova geração.

Mediador: Diante de tais apontamentos, fica cristalina a percepção da dificuldade dessa missão chamada família, da missão educação.

Hannah Arendt: A educação está entre as atividades mais elementares e necessárias da sociedade humana, que jamais permanece tal qual é, porém se renova continuamente através do renascimento, da vinda de novos seres humanos. Esses recém chegados, além disso, não se acham acabados, mas em um estado de vir a ser. Assim, a criança, objeto da educação, possui para o educador um duplo aspecto: é nova em um mundo que lhe é estranho e se encontra em processo de formação; é um novo ser humano e é um ser humano em formação. Esse duplo aspecto não é de maneira alguma evidente por si mesmo. Corresponde a um duplo relacionamento, o relacionamento com o mundo, de um lado, e com a vida, de outro.

Na medida em que a criança não tem familiaridade com o mundo, deve-se introduzi-la aos poucos a ele; na medida em que ela é nova, deve-se cuidar para que essa coisa nova chegue a fruição em relação ao mundo como ele é. Em todo caso, todavia, o educador está aqui em relação ao jovem como representante de um mundo pelo qual deve assumir responsabilidade, embora não o tenha feito e ainda que secreta ou abertamente possa querer que ele fosse diferente do que é. Essa responsabilidade não é imposta arbitrariamente aos educadores; ela está implícita no fato de que os jovens são introduzidos por adultos em um mundo em contínua mudança. Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação.

Mediador: Desta forma, portanto, a professora mais uma vez amplia a visão sobre a responsabilidade. A responsabilidade não é unicamente dos pais e dos mestres. Me parece a retomada da questão autoridade.

2. AUTORIDADE

Mediador: A professora concluía abordando a questão responsabilidade.

Hannah Arendt: Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação.

Mediador: Essa consciência, de uma responsabilidade coletiva pelo mundo, é uma consciência nobre. Mas é trazer a tona uma idéia que vem sendo apagada em nossos dias, que é a idéia de autoridade.

Hannah Arendt: Pois bem, sabemos todos como as coisas andam hoje em dia com respeito à autoridade. Isso, contudo, simplesmente significa, em essência, que as pessoas não querem mais exigir ou confiar a ninguém o ato de assumir a responsabilidade por tudo o mais, pois sempre que a autoridade legítima existiu ela esteve associada com a responsabilidade pelo curso das coisas no mundo. Ao removermos a autoridade da vida política e pública, pode ser que isso signifique que, de agora em diante, se exija de todos uma igual responsabilidade pelo rumo do mundo. Mas isso pode também significar que as exigências do mundo e seus reclamos de ordem estejam sendo consciente ou inconscientemente repudiados; toda e qualquer responsabilidade pelo mundo está sendo rejeitada, seja a responsabilidade de dar ordens, seja a de obedecê-las. Não resta duvida de que, na perda moderna da autoridade, ambas as intenções desempenham um papel e têm muitas vezes, simultânea e inextricavelmente, trabalhado juntas.

Mediador: Quando a professora diz “sabemos todos como as coisas andam hoje em dia com respeito à autoridade”, é curioso notar que esse escrito fora publicado no ano de 1954.

Hannah Arendt: Na educação, ao contrário, não pode haver tal ambigüidade face à perda hodierna de autoridade. As crianças não podem derrubar a autoridade educacional, como se estivessem sob a opressão de uma maioria adulta – embora mesmo esse absurdo tratamento das crianças como uma minoria oprimida carente de libertação tenha sido efetivamente submetido a prova na prática educacional moderna. A autoridade foi recusada pelos adultos, e isso somente pode significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças.

Mediador: Uma recusa que vem custando muito caro a toda sociedade, ao meio ambiente, a realmente todo mundo.

Hannah Arendt: É como se os pais dissessem todos os dias: Nesse mundo, mesmo nós não estamos muito a salvo em casa; como se movimentar nele, o que saber, quais habilidades dominar, tudo isso também são mistérios para nós. Vocês devem tentar entender isso do jeito que puderem; em todo caso, vocês não têm o direito de exigir satisfações. Somos inocentes, lavamos as nossas mãos por vocês.

Mario Sergio Cortella: O que pais e mães devem levar em consideração é que não é possível debater todas as coisas o tempo todo ou fazer reunião para tomar toda e qualquer decisão. Uma família não é uma instituição democrática, é uma instituição participativa. A organização democrática tem o pressuposto da igualdade de direitos e, portanto, também da igualdade de responsabilidades. Numa família, a responsabilidade dos adultos sobre aqueles que educam não é idêntica. Todos são iguais em termos de dignidade numa família, mas não têm as mesmas responsabilidades. O mesmo princípio se aplica na sala de aula. Eu sou igual meus alunos no sentido de dignidade, de respeito. Mas eu não sou igual naquela atividade. Eu sou uma autoridade em relação a eles. E se eu sou o pai, a mãe, ou alguém que cuida, sou responsável e tenho autoridade.

Mediador: É eu assumindo a responsabilidade, tomando um lugar de autoridade, sem a presunção de maior detentor de dignidade.

Mario Sergio Cortella: “A minha família é muito democrática.” Não, ela pode ser participativa. Pode ser uma família mais dialógica, em que o pai e a mãe tenham o hábito de conversar mais sobre as questões que envolvem aquele núcleo. Mas há situações em que a argumentação é absolutamente inútil. Uma menina de 14 anos, que está com os hormônios fervendo, que pensa que é livre, que vai fazer o que quiser da vida porque viu isso em filmes, em blogs, às 10 da noite, fala:

– Eu vou sair.

– Não vai, não.

– Por quê?

Se você argumentar que a cidade é perigosa, não vai fazer sentido. Ela diz “eu me cuido”. A noção de perigo dela é muito restrita. O que fazer nessa hora?

– Não vai. Eu sou o responsável por você, existe risco no que você vai fazer e eu não vou permitir.

– Ah, mas eu vou fazer se eu quiser.

-Não, não vai.

Hannah Arendt: A fim de evitar mal entendidos: parece-me que o conservadorismo, no sentido de conservação, faz parte da essência da atividade educacional, cuja tarefa é sempre abrigar e proteger alguma coisa – a criança contra o mundo, o mundo contra a criança, o novo contra o velho, o velho contra o novo. Mesmo a responsabilidade ampla pelo mundo que é aí assumida implica, é claro, uma atitude conservadora.

Mediador: É conservação no sentido mais natural do seu termo, para os seus e para o mundo. Sem qualquer abstração.

Hannah Arendt: Basicamente, estamos sempre educando para um mundo que ou já está fora dos eixos ou para aí caminha, pois essa a situação básica, em que o mundo é criado por mãos mortais e serve de lar aos mortais durante tempo limitado. O mundo, visto que feito por mortais, se desgasta, e, dado que seus habitantes mudam continuamente, corre o risco de tornar-se mortal como eles. Para preservar o mundo contra a mortalidade de seus criadores e habitantes, ele deve ser, continuamente, posto em ordem. O problema é simplesmente educar de tal modo que um por-em-ordem continue sendo efetivamente possível, ainda que não possa nunca, é claro, ser assegurado. Nossa esperança está pendente sempre do novo que cada geração aporta; precisamente por basearmos nossa esperança apenas nisso, porém, é que tudo destruímos se tentarmos controlar os novos de tal modo que nós, os velhos, possamos ditar sua aparência futura. Exatamente em benefício daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora; ela deve preservar essa novidade e introduzi-la como algo novo em um mundo velho, que, por mais revolucionário que possa ser em suas ações, é sempre, do ponto de vista da geração seguinte, obsoleto e rente à destruição.

Mario Sergio Cortella: Qualquer afrouxamento de convicção é, acima de tudo, um ato de irresponsabilidade.

Mediador: Professor, essa não seria uma idéia com bases autoritárias? Contrárias ao tempo no qual vivemos?

Mario Sergio Cortella: Autoridade não é autoritarismo, cabe enfatizar. Autoritarismo é aquele modo de ação em que existe brutalidade e opressão. Mas educar alguém exige um nível de interdição, de disciplinamento, e que deixará o outro entristecido, sim. Decerto haverá uma situação em que a criança ou jovem ficará chateado, irritado ou triste. Lamento. Há uma série de atividades que não são exatamente prazerosas, mas são necessárias em determinadas circunstâncias. Fazer dieta, deixar de comer alguns alimentos, é chato. Fazer tarefa escolar é chato. Quem gosta de sair da escola com um monte de tarefas? Nem o professor gosta de levar para casa 400 redações para corrigir. Não estamos falando do mundo do prazer. Para alguns meninos e meninas, a vida parece uma festa contínua. Ela é também uma festa, mas não é só isso.

Mediador: Uma festa que tem se demonstrado perigosa. O consumo de drogas sobe sem qualquer indício de quedas.

Mario Sergio Cortella: Um cuidado constante dos pais é aferir o risco de o jovem não cair no consumo excessivo de bebidas alcoólicas. Há necessidade de uma supervisão maior de adultos nessa questão. Primeiro porque pode ser danoso para a integridade física dele, segundo porque pode levar a uma conduta na vida mais irresponsável, o que também acarreta riscos para os outros. “Por que um menino de 17 não pode beber e um de 18 já pode?” Existem regras sociais que são históricas, e o limite mínimo estabelecido é 18 anos. Poderia ser 16 ou 21. Como aqui no Brasil é 18, assim o é. “Na minha casa não é assim.” Ok, é na sua casa. Mas, se na minha casa eu não quero que meu filho beba, então acompanharei de perto para que ele não faça. E deverei alertá-lo para não fazer e que, se o fizer, haverá conseqüência. Pode ser a retirada de algum privilégio, a retenção de algum bem de uso no dia a dia para ele se lembrar do que não deveria ter feito. Eu não estou me metendo na vida dele. A vida dele é da qual eu participo, seja por geração original ou por cuidado assumido.

Mediador: Uma atitude de caráter repressivo?

Mario Sergio Cortella: No uso corrente, a palavra repressão tem um sentido muito negativo entre nós, mas ela não é sempre negativa. Por exemplo, quando estou dando aula, eu reprimo o ruído que possa perturbar a atividade que está sendo desenvolvida. Assim como devo reprimir alguém que coloca um som muito alto num ambiente de convivência.

Algumas companhias aéreas pelo mundo afora estão limitando o uso de celulares das 22h às 6h nos vôos. É uma repressão? Sim. É negativa? Não. Porque está zelando pelo coletivo. “Mas eu não concordo.” Então, não entre naquele vôo. Se não tiver opção, então, assim o é. E, se não concordar de vez, organize-se com outros de modo a recusar aquela decisão. Afinal, não é porque as regras estão assim estabelecidas na legislação que não possam ser questionadas e alteradas. Todavia, enquanto a legislação estiver valendo, assim será. Se eu sou contra, me organizo com outros, vou debater, vou fazer o que estiver ao meu alcance para tentar mudar aquela situação. A democracia nos coloca essa condição.

Mediador: É, em verdade, um preparo para vida. Onde teremos controle sobre muito pouco ao nosso redor.

Mario Sergio Cortella: Se esta geração for formada de modo enfraquecido, de modo leviano, ela descuidará da vida humana. Isso é um risco, portanto, não é só uma questão de autoridade, é também uma questão de ética.

Hannah Arendt: O que nos diz respeito, e que não podemos portanto delegar a ciência específica da pedagogia, é a relação entre adultos e crianças em geral, ou, para colocá-lo em termos ainda mais gerais e exatos, nossa atitude face ao fato da natalidade: o fato de todos nós virmos ao mundo ao nascermos e de ser o mundo constantemente renovado mediante o nascimento. A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mediador: Para o encerramento desta discussão, trago uma reflexão relatada em “Os irmãos Karamazov”, Livro I, História de uma família. Ali, Dostoiévski começa uma de suas grandes obras apresentando Fiódor Pávlovitch Karamázov. Discorre sobre seus dois casamentos e sobre seus três filhos, Dmitri, com a primeira mulher, Ivan e Alieksiêi, da segunda.

Referente a primeira esposa de Fiódor Pávlovitch, Adelaida Ivánovna Miússova, Dostoiévski escreve que, num determinado momento, a esposa “(…) largou a casa e fugiu com um seminarista preceptor morto de fome, deixando com Fiódor Pávlovitch o filho Mítia (Dmitri), de três anos.”

Com a genialidade característica e que imortalizou a obra de Dostoiévski, o autor discorre dizendo que Fiódor Pávlovitch, por fim, conseguiu descobrir as pistas de sua fugitiva, que ela havia se mudado, junto com seu seminarista, para Petersburgo. E então, e aí vem o toque da genialidade, “(…)Imediatamente Fiódor Pávlovitch desdobrou-se e começou a preparar viagem a Petersburgo, sem, é claro, saber para quê.” (pág. 19).

Fiódor Pávlovitch estava a ponto de iniciar uma viagem sem qualquer rumo, sem qualquer norte. Preparava-se sem saber o por que, e portanto, preparava-se para nada. Verdadeiro paradoxo.

No que concerne a educação, vemos com clareza onde encontram-se algumas das lacunas que carecem de correção. No diálogo acima, foi falado sobre a crise da educação, do problema com a autoridade, sobre a questão do que é prioridade. Portanto, assim como Fiódor Pávlovitch, que descobriu onde estava sua esposa, cuja ausência lhe trazia dor, nós igualmente identificamos alguns dos pontos na educação, educação em sentido amplo, que exigem imediata correção, algumas das lacunas que cooperam para a fragilização do sistema social como um todo.

Desdobremo-nos, portanto, a ir contra todas essas dificuldades no campo educacional, não como quem não sabe o que quer, não como o pai Karamázov, mas como quem sabe o que quer, como quem deseja uma sociedade justa, solidária e respeitável.

REFERÊNCIAS

ARENT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo/SP, Perspectiva, 2005.

CORTELLA, Mario Sérgio. Família, urgências e turbulências. São Paulo/SP, Cortez Editora, 2017.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamázov. São Paulo/SP, Editora 34 Ltda, 2008.

 

Autoria de:

 Nicollas Madeira de Oliveira.

 Mestrando em Direito no Núcleo de Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-SP (PUC);

 Graduado em Direito e Pós Graduado em Filosofia pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS);

 Escrevente no 2º Oficial de Registro de Imóveis de Santo André-SP.

 

Como citar e referenciar este artigo:
OLIVEIRA, Nicollas Madeira de. A crise na Educação. Um diálogo improvável entre Hannah Arendt e Mário Sérgio Cortella. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/conhecimento-artigos/a-crise-na-educacao-um-dialogo-improvavel-entre-hannah-arendt-e-mario-sergio-cortella/ Acesso em: 28 mar. 2024