Direito Constitucional

Cotas Étnico-Sociais são Incompatíveis com o Reforço do Ensino Fundamental?

Marcito Galvão da Luz* 

 

 

Nos Pampas, uma das medidas recentes para a superação de uma estrutura de relações profundamente conservadora e excludente foi a adoção das cotas étnico-sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A partir do Vestibular de 2008, trinta porcento (30%) das vagas serão reservadas para egressos(as) do Sistema Público de Ensino, sendo que metade dessas vagas serão destinadas para afro-descendentes. Além disso, dez (10) vagas serão criadas especialmente para indígenas em 2008, cujo número poderá ser posteriormente alterado.

  

Sim, mas qual o problema? A igualdade de condições, tal qual expressa na propalada “bandeira” da meritocracia, é irrealista. Dados oficiais são ilustrativos do cenário das desigualdades: de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (PNAD) de 2004, no Rio Grande do Sul a população negra foi mensurada em 12,8% e, apenas na Região Metropolitana de Porto Alegre, a mesma foi calculada em 14,5%. O analfabetismo da população branca é de 4,9%; da negra, 9,3% e, entre pardos(as), 10%. O analfabetismo funcional foi contabilizado em 15,5% para brancos(as), 23,4% para negros(as) e 26,9% para pardos(as).

  

Os reflexos do processo de exclusão são evidentes no mercado de trabalho: pessoas ocupadas brancas possuem, em média, 7,9 anos de estudo e recebem, em média, 3,5 salários mínimos mensais; pessoas ocupadas negras possuem, em média, 6,5 anos de estudo e recebem 2,2 salários mínimos mensais. Cabe alertar que as médias são bastante sensíveis a valores extremos, podendo gerar distorções – veja especialmente o segundo capítulo de Como Mentir com a Estatística, livro “clássico” de Darrell Huff, em http://www.universal.net.br/acmm/Leituras/Como_mentir/TXT/capa.htm.

  

Se, na média, parece que somos uma Finlândia, pode-se perguntar: o que os dados acima têm a ver com a Universidade? As desigualdades descritas acima refletem maior perversidade no acesso ao Ensino Superior. Entre todos(as) que ingressaram na UFRGS em 2006 (n=2.677), houve preenchimento compulsório de pesquisa vinculada ao Projeto Conexão de Saberes. Os resultados foram os seguintes: 91,52% declarou-se branco(a), 1,64% preto(a), 4,26% pardo(a), 0,82% amarelo(a), 0,45% indígena e 1,31% não informou. Pretos(a), pardos(as) e indígenas somam, portanto, 6,35%. Em relação ao tipo de estabelecimento de origem, a escola particular atingiu maioria considerável (62,2%) e a escola pública totalizou 36,8% das respostas.

  

Como era de se esperar, a adoção das cotas na UFRGS se deu através de muita luta, e a aprovação da medida não ocorreu com tranqüilidade. A título de ilustração, as manifestações anti-cotas foram visíveis, variando de comunidades de orkut e a utilização das enquetes enquanto “provas cabais” de que a maioria das pessoas era e é (sic) contrária à medida. Outros recursos utilizados foram as pichações de muros, a realização de abaixoassinado, os debates na imprensa e a criação de movimento “anti-cotas racistas” (sim, é irônico: como se “racismo” fosse gerado por decreto…).

  Um dos argumentos centrais tem sido o de que as cotas, nas Universidades, são espécie de doações ou mecanismo de inclusão de futuros ingressantes por governos populistas. Desse ponto de vista, a reação de alguns setores sociais tem sido o uso do chavão, pois “é preciso ensinar a pescar em vez de se dar o peixe” e, no caso específico das cotas, “é preciso maiores investimentos em educação”, sobretudo em escolas públicas. Argumentamos que este modo de pensar reflete não apenas a resistência às cotas, mas uma espécie de romantismo que pode levar à crise de racionalidade. Vejamos a seguir alguns dos porquês.

Em primeiro lugar, há uma relação entre prazos: as cotas, na condição de políticas afirmativas, são medidas emergenciais com o objetivo de compensar, em curto prazo, uma geração a partir do reconhecimento de um problema. O pressuposto subjacente é o de que, assumindo-se que a “igualdade de condições” é irrealista, é preciso tratamento desigual para que se obtenha igualdade de condições. Na prática, trata-se de reconhecer que estudantes de escolas públicas e afro-descendentes enfrentam obstáculos muito maiores em comparação com estudantes brancos(as), especialmente os(as) de origem em escolas privadas.

  O reforço da Educação Básica, por sua vez, tende a apresentar resultados em longo prazo, e com a condição de que tais políticas públicas direcionadas à sua melhoria sejam efetivamente levadas a cabo. Para seu adequado enfrentamento, talvez seja necessária ampla reforma educacional, com foco na qualidade. Mas é de se questionar: o que é “investir em educação”? Quais os conteúdos de uma reforma educacional? Quais são as necessidades das escolas, em seus diversos segmentos? E o que dizer dos descompassos nas relações entre expectativas e demandas escolares?

 

 Embora um dos entraves à melhoria das escolas passe pela melhoria dos salários do magistério, o que se quer alertar aqui é que, além de impreciso, é insuficiente atribuir “investimentos em educação” apenas aos recursos estruturais e/ou financeiros. Sem considerar o principal, que são os recursos humanos, o discurso existente não ultrapassa a falácia, já que educação não pode ser reduzida à construção de prédios. Assim, é fundamental que as escolas possuam, entre outros aspectos, condições para assegurar a qualidade, através da construção de projetos pedagógicos, tanto individuais quanto grupais, comprometimento com o processo de ensino-aprendizagem, políticas de formação contínua e especial atenção ao reduzir a excessiva carga horária de trabalho de educadores e profissionais em educação, e preferencialmente sem prejuízo de salários.

 

 Outro conjunto de fatores que incide na qualidade educacional está relacionado à participação: como incluir comunidades escolares e proporcionar a descentralização nos processos de tomadas de decisões nas escolas? Em investigação do próprio autor deste texto sobre os principais problemas existentes em Alvorada/RS, cidade pobre da Região Metropolitana de Porto Alegre e com reduzido PIB per capita, a educação aparece como décima prioridade entre eleitores. Esse cenário abre precedentes para que, nessa cidade, tais políticas públicas sejam mais imediatistas do que sustentáveis, mais governamentais do que políticas de Estado, permeada por contradições em discursos “revolucionários” em coexistência com práticas pedagógicas autoritárias. Além disso, educação não tende a ser vista como forma estratégica com vistas à mobilidade social e ao desenvolvimento, mas é compreensível no sentido de que populações que sofrem as exclusões históricas tendam a priorizar a sobrevivência, em detrimento dos direitos e obrigações básicas.

 

 Enfim, as cotas não são promessas de soluções definitivas, mas instrumento que pode assegurar maior diversidade nas Universidades, e as lutas por inclusão trazem novo desafio: assegurar que cotistas sejam bem recebidos(as) e permaneçam na Universidade. Apenas o primeiro passo foi realizado, e ainda há muito por fazer. Também é de se atentar que as cotas não desautorizam a luta por melhorias necessárias na Educação Básica. Por esses motivos, o argumento de que “é preciso mais investimentos em educação” reclama por maior precisão, pela constatação de que educação é problema e solução de todos e todas e, principalmente, pela ruptura com um tipo de atitude ultra-conservadora: aquele que busca encontrar culpados em tudo.   * Marcito Galvão da Luz é Assessor Pedagógico da Secretaria de Educação de Alvorada/RS. Atualmente éresponsável técnico do Projeto Fala Educação nessa Secretaria, visando pontuar, através de pesquisas,alcances e limites de políticas públicas orientadas para a educação, especialmente junto ao Serviço deEducação de Jovens e Adultos (SEJA). Também é mestrando em Ciência Política na UFRGS. Orientado por Jussara Reis Prá, sua dissertação (em desenvolvimento) visa compreender as relações entre Cultura Política eos Cenários de Representação nas eleições de 2004 em Alvorada/RS. Suas publicações recentes foram: juntocom Mirian Possamai Barbosa, Pode o Capital Social Superar o Formalismo?, em Revista SETREM, n. 6,2005; Sete Mitos Sobre as Cotas Étnico-Sociais na UFRGS, em http://ufrgsprocotas.noblogs.org/post/2007/07/02/sete.mitos, e O Modelo Político Solidarista e a Capital daSolidariedade, entre a Cruz e a Espada, artigo a ser publicado na Revista Debates (no prelo)  

 

 

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Como citar e referenciar este artigo:
LUZ, Marcito da. Cotas Étnico-Sociais são Incompatíveis com o Reforço do Ensino Fundamental?. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/cotas/ Acesso em: 28 mar. 2024